As metas europeias para o digital até 2030 são ambiciosas e a conetividade assume um papel fundamental, com acesso gigabit para todos e 5G em toda a parte. Mas subsistem grandes desequilíbrios entre estados-membros e mesmo dentro de cada país. Portugal é um exemplo. No momento que se debate no Parlamento a nova Lei das Comunicações Eletrónicas, que pretende ir mais além da legislação comunitária, subsistem muitas dúvidas e multiplicam-se os alertas. Nomeadamente em termos de equilíbrio do setor, de capacidade de investimento e de se privilegiar a concorrência em detrimento da inovação. No mais recente webinar da APDC com a VdA debateram-se as vantagens e os riscos para o futuro de um tema verdadeiramente complexo.
Este evento insere-se no ciclo "Digital Union", destinado a discutir os temas relevantes do digital, iniciativa que resultou de uma parceria entre a APDC e a VdA. Como destacou Rogério Carapuça, Presidente da APDC", é fundamental "saber o que está a ser preparado na UE para o digital. Quer em termos de políticas públicas, quer de regulação". É que as decisões e orientações de Bruxelas no que respeita ao digital e à conetividade "afetarão todos os setores e atividades e terão impactos no Estado. A componente jurídico-legal e a regulação atravessam tudo isso. Podem, às vezes, ser um espartilho ou um fator de aceleração, de desenvolvimento e de motivação. É isso que queremos com esta discussão", acrescentou Fernando Resina da Silva, Partner da VdA.
E a ‘fasquia' da UE é "muito elevada", deixa claro Tiago Bessa, Partner da VdA, que apresentou o tema da conetividade, enquanto "capacidade de disponibilizar uma ligação à internet para qualquer utilizador", sendo um "fator essencial de coesão, de ligação entre pessoas, localidades e nações. É algo fundamental para a transição digital, o progresso científico, a inovação e o desenvolvimento das tecnologias".
O Digital Compass, apresentado pela Comissão Europeia no início de março, fornece a visão e as metas para que a Europa tenha sucesso na sua transformação digital até 2030. Pretende-se que se transforme no continente com maior capacidade de conectividade em termos de redes de muito alta capacidade e de massificação do 5G. O problema, segundo Tiago Bessa, é que "ainda estamos muito longe destas metas e são necessárias muitas ações e medidas".
E destaca três documentos fundamentais, quando se analisa a importância da conectividade para o futuro do digital: a Diretiva Broadband Cost Reduction, que está em revisão e é muito relevante para reforçar os direitos dos operadores no acesso às infraestruturas; o Código Europeu das Comunicações Eletrónicas (CECE), enquanto pilar central da estratégia de conectividade europeia; e a Recomendação Connectivity Toolbox, que consagra 39 boas práticas para permitir o reforço da conetividade.
CECE: UM MONSTRO JURÍDICO EUROPEU
Para o jurista, o CECE, sendo o "pilar central da estratégia de conectividade. Um monstro jurídico, altamente complexo, sendo a sua interpretação uma loucura". Consagra não uma revolução, mas uma evolução do que está a ser feito desde 2002, embora tenha também novidades significativas. Como passar a integrar os OTT's, embora de uma forma light touch, reforçar a proteção dos consumidores, definir um novo conceito e novas regras de promoção do investimento em redes de capacidade muito elevada ou, em termos de regulação, o retorno das obrigações e a criação de novas obrigações assimétricas, como a existência de empresas meramente grossistas.
Destaca ainda a aprovação de um princípio de harmonização máxima, que obriga os estados-membros a seguir as medidas preconizadas no CECE., embora possam ir mais-além. O diploma é tão complexo que deveria ter sido transposto para os estados-membros até final de 2020, mas apenas 4 países o fizeram. Portugal é um dos incumpridores, estando neste momento a proposta de lei da transposição em debate no Parlamento. E há medidas que estão a gerar forte discussão, nomeadamente as ligadas ao reforço da proteção dos consumidores ou em torno do 5G. É que se Bruxelas quer utilizar os leilões para dinamizar a concorrência no mercado, reservando faixas de espetro para novos entrantes e impondo condições aos atuais operadores, pretende em paralelo garantir condições de concorrência futura e que não existam entraves ao investimento.
Sérgio Gonçalves do Cabo, Partner, Luís Silva Morais, Sérgio Gonçalves do Cabo & Associados, que presidiu ao grupo de trabalho que elaborou a proposta de transposição do CECE, concorda que se trata de um processo complexo e com muitas matérias. O projeto da Lei das Comunicações Eletrónicas foi apresentado em abril pelo Governo à Assembleia da República e o processo legislativo continua em curso.
Entre os temas que estão a gerar debate está a definição do que são autoridades competentes, além do regulador, assim como a avaliação do impacto regulatório, a cooperação entre operadores e as obrigações assimétricas, impostas aos players com poder de mercado significativo. Na sua opinião, o CECE vem "criar espaço para uma autorregulação ou regulação por compromisso, com a consequente redução da regulação ex-ante, que só fará sentido onde for necessária, tendo menor espaço para intervir".
O levantamento geográfico das redes, que terá que ficar disponível dois anos após a aprovação da proposta de lei, de enorme relevância para a definição das obrigações de cobertura, para o serviço universal e para a aplicação de fundos públicos, é também destacado. Tal como a "área mais problemática dos direitos dos utilizadores", com 34 artigos consagrados no CECE, sobre temas como não deixar ninguém de fora no acesso, fidelizações, pacotes de serviços, comparabilidade de ofertas ou duração dos contratos.
DA VISÃO ESTRATÉGICA À REALIDADE DE MERCADO
A sessão de debate sobre este tema da maior importância para o futuro começou com uma visão europeia dada por Ricardo Castanheira, Digital & Telecom Counselor da REPER. Trata-se de ter "uma visão estratégica para o futuro", que foi reforçada no âmbito da presidência portuguesa, que agora terminou, saldando-se num sucesso em tudo o que respeita às comunicações eletrónicas, inteligência artificial ou dos dados.
Sendo um dos grandes objetivos afirmar a soberania estratégica da UE do ponto de vista digital, sendo a região mais conectada do mundo, apresentado no âmbito do Documento estratégico da "Bússola Digital 2030", deixa claro que "há muito quer fazer em todas as áreas da conetividade". A começar pela cobertura 5G, hoje de apenas 14% das áreas populacionais, sendo a meta chegar a 100% em 2030. Já a cobertura gigabit é de 59%, mas ainda faltam 41%. Não há ainda soluções de computação quântica, que são fundamentais, mas dependem de redes de alta velocidade. E estamos muito atrás em termos de dados, citando a adoção de serviços cloud, que na UE são adotados por apenas um quarto das empresas, o mesmo que na adoção de soluções de inteligência artificial.
"Para atingirmos estes objetivos temos vários caminhos. A parte regulatória é uma delas, mas temos ainda a parte de investimento, assim como a dimensão programática", explica. Como a assinatura, no 1º semestre da declaração sobre a conectividade internacional, "que é absolutamente relevante". É que sem isto "não há soberania, nem se pode falar em dados, nem em soluções de inteligência artificial, de machine learning e de computação quântica".
Havendo "manifestamente um gap na conetividade em termos europeus, assim como vários gaps sociais quando se fala em dimensão digital", tudo dependerá da interação e integração europeia. Sendo a dimensão financeira essencial, destaca que os PRR serão uma parte importante para o investimento, assim como o programa Connecting Europe Facility (CEF) e a sua componente digital, energética e de transportes, com 2,2 mil milhões de euros para o digital e aproveitar as infraestruturas para integrar redes de comunicação. Já o programa Europa Digital que, não tratando especificamente de conectividade, está ligado, porque tem um pilar de segurança que é essencial para o tema, que tem mais 7,6 mil milhões de euros para áreas estratégicas.
"Andamos na Europa a gerar redundâncias permanentemente, porque desenvolvemos soluções em muitos países que outros também estão a desenvolver e com isto não ganhamos escala. A Europa precisa de ter escala. É a única forma de sermos competitivos com os EUS e China, em particular", salienta. Defendendo que a "filosofia de ter projetos supranacionais está por detrás este novo bundle de programas de financiamento, deixa a mensagem de que a partir de agora "é preciso construir parcerias e gerar sinergias que vão além da capelinha portuguesa e ultrapassem as fronteiras nacionais. É uma responsabilidade de todos criar condições para que as empresas tenham condições para gerar estas sinergias, porque é a única forma de serem financiadas".
Mas como é que os operadores nacionais olham para a realidade atual e para o pacote que está em debate na AR? Pedro Mota Soares, secretário-geral da Apritel, começa por destacar que "o setor das comunicações nacional é exemplar, quando comparado com a UE", em termos de cobertura e de qualidade das redes. O que só foi possível "graças ao investimento totalmente privado feito pelos operadores".
Entre 2015 e 2019, diz que o investimento foi de 5,2 mil milhões de euros, dotando o país "de uma capacidade de redes com cobertura muito extensa, uma forte resiliência e grande qualidade", comprovadas pela situação pandémica. O que "não quer dizer que não haja coisas para fazer, em termos de aumento da cobertura e qualidade das redes". por fazer para continuar a aumentar o trabalho de cobertura e qualidade das redes. Aqui, fará sentido pensar em alocar investimento público, nomeadamente nas zonas brancas, onde a cobertura é baixa ou inexistente, salienta.
Reiterando que os consumidores beneficiam de "serviços de elevada qualidade a preços muito reduzidos, comparando francamente bem na média europeia", destaca que o país sempre teve um sistema que permitiu a "programação do investimento, porque havia um quadro de equilíbrio entre todas as partes". É o caso das fidelizações, uma solução que considera ser win-win para consumidores e operadores, assim como para o país, em termos de capacidade e qualidade das redes, "essenciais para os enormes desafios que temos da transição digital e coesão social e geográfica".
Por isso, defende que "é muito importante dar condições e não se mudar um quadro que tem funcionando", garantindo por exemplo a capacidade dos operadores investirem no leilão de 5G, que "significará também um reforço das redes 4G e implicará uma grande capacidade de investimento".
CONCORRÊNCIA: UM PROCESSO OU UM RESULTADO?
O problema, para Álvaro Nascimento, Associate Professor of Banking & Finance da UCP, é que a concorrência deve ser olhada como um processo e não como um resultado, o que parece estar a ser esquecido. Defendendo que há que encontrar nas comunicações uma "dinâmica que permita liberdade de escolha e igualdade de oportunidades", diz que o "quadro jurídico e institucional que está a ser montado, o regulador está mais focado no resultado que no processo, com a construção de um mercado concorrencial que não existe na prática".
"O diabo está nos detalhes. Há todo um foco excessivo num resultado e não numa dinâmica concorrencial que todos sabemos que existe", acrescenta. Mesmo ao nível europeu, "avançou-se imenso num quadro de comunicações europeu muito mais livre, mas continua tudo muito centrado nos mercados específicos. Se olharmos para a origem da abertura deste mercado, foi vendida dom uma arquitetura com infraestruturas que seriam concorrenciais e os consumidores escolheriam. Agora, já se fala em partilha, considerando que não é um investimento reprodutivo".
Admitindo que o tema é extremamente complexo, considera que "o regulador se tornou demasiado europeu, institucionalista e pouco confiante no funcionamento do mercado. Estamos a evoluir na construção teórica do modelo da concorrência, mas temos sido pouco efetivos na avaliação da contestabilidade dos mercados. Esquecemo-nos que as indústrias mudam todos os dias em termos de modelos de negócio e que existem dinâmicas de concorrência que não existiam antes. Estamos num quadro que é muito de politicas públicas e muito pouco de privadas".
Já no âmbito do período de Q&A, quando questionado sobre a multiplicidade de operadores na Europa face aos restantes continentes, Ricardo Castanheira deixa claro que essa será uma decisão do mercado, se os operadores entenderem que a interação lhes dará mais escala e capacidade de investimento, e não de Bruxelas. Ainda assim, e olhando para mercados como os Estados Unidos, onde os operadores estão a entrar em força no negócio dos conteúdos, defende que o movimento é inexorável e que acabará por acontecer na Europa.
Acresce que os operadores europeus têm que perceber que se vive "um momento novo" e que terão que se adaptar a uma nova realidade. "Não basta pedir para, por exemplo incluir os OTT's nas diversas regulações e depois ficarem estáticos, mantendo os seus modelos de negócio, quando tudo está em transformação. É preciso que as telcos, que muito fizeram em investimento, se adaptem", defende.
Acrescem as grandes assimetrias que continuam a persistir no panorama europeu, acrescenta Álvaro Nascimento. Sendo "a questão da concorrência de rivalidade e não de poder de mercado", o papel do regulador terá de "focar-se no processo", garantindo que este é "equilibrado e equitativo, sem distorções" e não no resultado, porque com isto está "a introduzir elementos de distorção na vida das empresas que podem ter efeitos perniciosos".
E cita o caso da obrigatoriedade de abertura das redes dos operadores como um exemplo do que não fazer. "Há que preservar o bem comum, mas manter o bem privado. Abrir uma rede privada à concorrência tem implicações seríssimas na forma como se gere a infraestrutura, nomeadamente em termos de qualidade. O que está em causa é o elemento de diferenciação. São nestes debates que vivemos em esquizofrenia".
Sobre o eventual fim das fidelizações de dois anos e dos novos valores das compensações por incumprimento, Pedro Mota Soares salienta que "é importante não mexer num sistema que está equilibrado e em que todos ganham". Sobretudo porque nos próximos anos, o país terá de investir muito na capacidade das redes: "estamos a falar de investimentos muito avultados e que precisam de ter estabilidade. Senão, atrasa-se o desafio da transição digital. É importante que a reflexão na AR seja informada".
Sobre o leilão do espetro para o 5G, que continua a decorrer, e a entrada de novos concorrentes e o seu impacto no mercado, Álvaro Nascimento defende que quando mais players existirem, maior necessidade haverá de partilha dos investimentos. Para o economista, há uma clara opção por mais concorrência em vez de mais inovação, pelo que se corre o risco de haver excesso de capacidade instalada, perdendo-se eficiência a prazo.
"De uma forma global, tem havido alguma perversidade dos mecanismos de leilão, construídos mais na maximização da receita do que no progresso e no bem-estar. Por isso, muitas vezes desenharam-se modelos em que não se pensou na sustentabilidade e, mais adiante, o mercado reorganizou-se, até com reconstituições de monopólios naturais", explica, acreditando que "do ponto de vista geral, o concurso do 5G é capaz de não estar completamente equilibrado para garantir um mercado concorrencial. Não deixar ao mercado os instrumentos e a liberdade para a diversidade poderão resultar, no futuro, por haver um processo ao contrário, de consolidações".
PROGRAMA
09h30 Boas-vindas
- Rogério Carapuça - Presidente, APDC
- Fernando Resina da Silva - Partner, VdA
09h40 "Conectividade - de que falamos?"
- Tiago Bessa - Partner, VdA
09h50 A transposição do CECE
- Sérgio Gonçalves do Cabo
- Partner, Luís Silva Morais, Sérgio Gonçalves do Cabo & Associados
10h00 Debate
- Álvaro Nascimento - Associate Professor of Banking & Finance, UCP
- Pedro Mota Soares - Secretário-Geral, Apritel
- Ricardo Castanheira - Digital & Telecom Counselor, REPER
Moderação: Sandra Fazenda Almeida, Diretora Executiva, APDC & Tiago Bessa, Partner, VdA
10h20 Q&A
Apresentações disponíveis para download:
ORADORES
SABIA QUE?
- Sabia que já foi aprovada em Conselho de Ministros a tarifa social de internet, destinada a facilitar o acesso ao digital a mais de 700 mil famílias carenciadas, promovendo a cidadania digital e o acesso à Internet de banda larga?
- Sabia que está em discussão no Parlamento a nova Lei das Comunicações Eletrónicas, que transpõe para Portugal o novo Código Europeu das Comunicações Eletrónicas, e que poderá conduzir a uma redução dos períodos de fidelização nos serviços de comunicações eletrónicas, atualmente até 24 meses?
- Sabia que, no âmbito da discussão no Parlamento da nova Lei das Comunicações Eletrónicas, poderão ser limitadas as refidelizações dos clientes de serviços de comunicações eletrónicas? E que estão previstas novas regras nas fidelizações?
- Sabia que a nova Lei das Comunicações Eletrónicas prevê novas regras para os pacotes de serviços, destinadas a proteger os consumidores?
- Sabia que a proposta da Lei das Comunicações Eletrónicas tem novas regras para os OTT (Skype, WhatsApp, Messenger) e que reforça os direitos dos consumidores na utilização de alguns desses serviços?
- Sabia que a nova Lei das Comunicações Eletrónicas, ainda em debate no Parlamento, vai alargar o conceito de serviço universal ao acesso à internet de banda larga a preços acessíveis?
- Sabia que a nova Lei das Comunicações Eletrónicas preconiza avanços importantes na promoção do investimento em redes de capacidade muito elevada, para impulsionar a digitalização da economia e a conetividade para todos?
- Sabia que a nova Lei das Comunicações Eletrónicas estabelece novas regras de acesso a infraestruturas, tendo em vista a promoção da concorrência? Sabia que a nova Lei das Comunicações Eletrónicas prevê a possibilidade de impor condições à atribuição de direitos de utilização de frequências, como as obrigações de roaming nacional ou regional?