Bruxelas quer acelerar as infraestruturas de alta velocidade, para alcançar as ambiciosas metas da Década Digital. Nesse sentido, tem em marcha a negociação e aprovação do Pacote Conectividade. São três projetos distintos, que visam criar redes gigabit no espaço comunitário, e que estão a gerar críticas de vários quadrantes. O tema do investimento está no centro do debate, com telcos e big tech a esgrimirem argumentos. Num cenário onde é dificil traçar perspetivas, dada a aceleração tecnológica sem paralelo, aguarda-se com expetativa a entrada em vigor das novas regras, como ficou claro na 7ª Sessão do Digital Union, um ciclo de webinars sobre o digital realizado pela APDC em parceria com a VdA.
"Com o Pacote Conectividade, a UE pretende ultrapassar os desafios da implementação de infraestruturas de comunicações, que é lenta e dispendiosa. E fornecer às entidades nacionais orientação sobre o acesso às redes, incentivando a partilha de infraestruturas e o abandono de tecnologias antigas, porque a tecnologia evolui muito depressa. Mas também perceber o futuro da conetividade e dos avanços tecnológicos das infraestruturas, que é um ponto importante", avançou Fernando Resina da Silva - Sócio da Área Comunicações, Proteção de Dados & Tecnologia, Sócio Responsável da Área PI Transacional da VdA, no arranque deste webinar.
Para este responsável, os três documentos base deste pacote, ainda recente, e que têm o "objetivo de fornecer conectividade gigabit a todos os cidadãos e empresas até 2030", já estão a gerar críticas, nomeadamente entre os operadores europeus. A começar pela "intenção de forçar a partilha de redes, em vez de criar mecanismos de incentivos para essa partilha. Vem ainda estabelecer uma regulação ex-ante, quando o setor deve ser governado por normas da concorrência, ex-post, e a própria CE tem defendido isso. Há aqui alguma contradição entre o que tem vindo a ser a prática e o que o regulamento agora define", considera.
Destaca ainda, entre as críticas, o facto de o pacote excluir "as infraestruturas nacionais críticas. Apesar de não ser muito claro, são entendidas como as existentes, pelo que os incumbentes estariam a salvo de muitas obrigações e que o regulamento de aplicaria essencialmente aos novos operadores". Acresce que, para se atingirem estes objetivos muito ambiciosos de 2030, serão necessários muitos investimentos, sendo a questão a de "saber quem é que os vai pagar. Os operadores de comunicações, as big tech, os utilizadores finais? Espero que a discussão ajude a lançar alguma luz sobre estes temas", concluiu.
CONETIVIDADE GIGABIT PARA TODOS
O Pacote Conectividade Bruxelas insere-se num dos quatro eixos do amplo programa europeu Década Digital, com o qual Bruxelas definiu múltiplas metas a alcançar até 2030 em termos de skills, governança, negócios e infraestruturas. E surge precisamente para cumprir o objetivo de garantir conetividade gigabit para todos e cobertura de alta velocidade móvel (pelo menos de 5G) em todo o lado.
João Ferraz, Associado da área de ICT da VdA, destacou, na apresentação do projeto europeu, que "há um objetivo da EU de continuar a investir e estar na vanguarda das telecomunicações. O que se pretende é que haja uma continuidade nesse investimento. Para isso, avançou com o Pacote Conectividade", sendo os documentos em discussão ainda propostas, não se conhecendo ainda as versões finais.
Em cima da mesa estão três documentos: a proposta de Regulamento Infraestruturas Gigabit, que estabelece regras para permitir uma implantação mais rápida, barata e eficaz de redes gigabit em toda a UE; o projeto de Recomendação Gigabit, dirigido aos reguladores nacionais, que fornece um conjunto de orientações sobre as condições de acesso às redes de comunicações dos operadores com poder de mercado significativo (PMS), para incentivar um abandono mais rápido das tecnologias clássicas e uma implantação acelerada das redes gigabit; e a consulta pública exploratória sobre o futuro da conetividade e das suas infraestruturas, onde se procurou auscultar o mercado sobre a forma como as crescentes exigências de conectividade e os desenvolvimentos tecnológicos podem afetar o futuro do setor, dos seus players e dos utilizadores.
Neste último caso, refere que ainda "não se conhece o resultado em termos legislativos. Não se sabe o que virá depois desta consulta pública e de que forma a CE atuará, tendo em conta os resultados da consulta. O que se sabe é como o mercado olha para o futuro da conectividade e das infraestruturas na UE, o que é essencial para a definição das políticas que venham a ser implementadas neste âmbito."
Detalhando cada um dos documentos, João Ferraz explica que, no caso do Regulamento Infraestruturas Gigabit, procurou-se resolver as falhas que houve na Europa na implementação da anterior diretiva, a Diretiva de Redução de Custos de Banda Larga (Diretiva 2014/61/UE). Esta foi interpretada de forma diversa pelos vários países, não se registando uma harmonização na forma como o tema foi tratado.
O facto de a diretiva anterior ter sido interpretada e aplicada de forma diferente nos estados-membros, com mais ou menos exigência, vai ditar alterações de fundo em muitos países. Mas não será o caso de Portugal, que "sempre esteve na vanguarda do acesso, com regras muito exigentes para incentivar a partilha e o acesso a infraestruturas". Por isso, não se esperam no nosso país "grandes alterações ou de enorme relevo".
Já no caso da Recomendação, sendo dirigida aos reguladores nacionais, espera-se que todos tenham uma interpretação conjunta e consistente sobre a forma como devem aplicar as obrigações aos operadores com PMS.
Na consulta pública, o objetivo foi ver como é que os diferentes players olham para os temas do futuro do setor. E há aspetos convergentes nas quase 400 respostas: todos concordam na necessidade de inovação e investimento eficiente em novas redes; que deve haver um aproveitamento do mercado único para impulsionar a inovação e o investimento, nomeadamente através da simplificação e da harmonização da legislação aplicável na UE, nomeadamente quanto ao espetro; e destacado o tema da segurança das redes, com o aumento das tensões geopolíticas.
Como explica este responsável, esta consulta focou-se essencialmente em 4 pontos: evolução tecnológica e do mercado, barreiras ao mercado único, fairness para os consumidores e fair contribution. E em muitos casos, as opiniões foram muito divergentes. Particularmente no último tema, que envolve a eventual contribuição das big tech para o investimento nas redes.
"Os operadores consideram que há uma necessidade de investimento e não devem ser só eles os envolvidos, pois as big tech utilizam uma grande parte da banda disponível. Há ainda temas de neutralidade da rede e que modelo poderia ser aceite para a partilha de custos e quem é que deve pagar. O debate vai continuar", adianta.
E deixa claro que na Declaração dos Direitos Digitais e dos Princípios para a Década Digital, aprovada no final do ano passado, se preconiza "a necessidade de uma contribuição justa e proporcional de todos os atores do mercado. Resta saber de que forma e ainda não há resposta para isso". A finalizar, recordou que a implementação do novo pacote ainda não tem data definida, sendo provável que o Projeto de Recomendação seja aprovado primeiro, pois não está sujeito a tantas fases de discussão. Já o projeto de Regulamento ainda está numa fase inicial. Nos resultados da consulta pública, espera-se pela forma como serão aproveitados por Bruxelas.
QUEM PAGA AS REDES GIGABIT?
No debate que se seguiu, moderado por Sandra Fazenda Almeida, Diretora Executiva da APDC, e Tiago Bessa, Sócio da Área de Comunicações, Proteção de Dados & Tecnologia, PI Transacional da VdA, ficaram claras as diferenças e divergências, consoante o perfil dos players de mercado.
No caso de uma big tech como a Google, Helena Martins, Head of Government Affairs and Public Policy da subsidiária portuguesa, manifestou a sua preocupação com o facto dos operadores de telecomunicações continuarem a defender uma posição de imposição de uma contribuição às gigantes tecnológicas. Trata-se de um "problema de premissa. As telcos alegam que precisam de financiamento para preencher um gap de investimento e centenas de milhões de euros para construir as redes de próxima geração. Mas, na nossa opinião, o tema tem de der visto numa outra perspetiva: o investimento ainda não foi feito e, de acordo com o histórico dessas empresas, isso vai acontecer no desenvolvimento normal dos negócios".
Destaca ainda não existe qualquer evidência de falha de mercado, que obrigue a qualquer intervenção, o que foi mesmo confirmado pelo BEREC, o regulador europeu das comunicações. Cita ainda um estudo pedido pela CE sobre necessidades de investimento e financiamento para as metas de conetividade, aponta-se que as as telcos precisam entre 174 mil milhões e 200 mil milhões de euros para atingirem os targets de produtividade. O que representa 100 mil milhões a menos do que dizem as empresas.
"Na verdade, existe uma relação muito simbiótica entre os fornecedores de conteúdos e aplicações, como a Google, e as empresas de telecomunicações. As primeiras investem nos serviços e, a partir daí, os utilizadores têm interesse em contratar planos tarifários para poderem aceder a esses conteúdos. Por isso, na nossa perspetiva, há uma complementaridade e, nesse sentido, não existe um problema de mercado", remata.
Já os operadores têm uma visão distinta. Pedro Mota Soares, Secretário-Geral da Apritel, associação que representa os operadores, começa por destacar que o tema é conseguir garantir na Europa as condições que promovam o desenvolvimento das redes, alcançado os objetivos da Década Digital, para que não fiquemos para trás de outras regiões do mundo. O que implica um esforço de investimento muito elevado.Tendo em conta que só nas redes 5G a previsão de investimento é de 300 mil milhões de euros, diz que "temos de conseguir criar todas as condições para que este investimento seja real, porque mudará a forma de viver e trabalhar, garantindo à Europa ser um espaço geográfico destacado".
Considerando que o novo Regulamento Infraestruturas Gigabit "não pode significar um retrocesso face ao que já existe no mercado nacional", refere que fica claro que em algumas áreas "ataca o vanguardismo do setor em Portugal". Como a orientação para os custos, que já é uma realidade nacional, que permitiu que o país disponha de redes de alta velocidade que cobrem mais de 94% do território. Mas fica também claro, na sua perspetiva, que "há matérias que têm que ser revistas, e muito rapidamente, para permitir continuar a fazer os investimentos necessários".
Tendo em conta a consulta pública, destaca que "ao nível europeu (e em Portugal os números são similares), seis gigantes tecnológicos utilizam cerca de 56% das redes. O que gera um enorme esforço para as redes e a previsão é que continue a aumentar. Este aumento de tráfego não representa para os operadores mais receitas, pelo contrário. Temos vindo a assistir a uma redução do custo unitário de cada um dos serviços, o que está a gerar dificuldades de levantamento de capital".
Por isso, defende ser "importante que haja uma justa contribuição de todos os que estão a utilizar e tirar benefício das redes, para garantir o objetivo de continuar a fazer o investimento que Portugal e a Europa precisam nesta matéria. O jogo, de facto, fica muitas vezes desequilibrado, com ausência de level playing field. Os operadores estão sujeitos a regulação e as big tech não. Pagam taxas regulatórias que outros não o fazem, quando usam com muito significado a rede. Tem se ser aplicado o princípio de uma contribuição justa, onde todos possam contribuir de forma adequada para um esforço que vai beneficiar todos".
Já a abordagem de Ana Amoroso das Neves, Head of the Internet Governance Office da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia ao tema é totalmente distinta, numa altura em que, como refere, "estamos a começar um período muito curiosos na governação da internet a nível mundial", com pactos e acordos. A Europa, por sua vez, "tenta dar as suas respostas, num esforço para equilibrar um mercado que é totalmente dominado pelas big tech norte-americanas, que estão a contribuir para um aumento do tráfego de uma forma brutal, por serem grandes fornecedores de conteúdos".
"Estas grandes empresas dominam completamente o mercado mundial, com uma evolução da internet cada vez mais imersiva e uma produção de dados a disparar. Os providers têm alguns problemas em acompanhar esta necessidade tão grande de acesso a mais dados, o que provoca esta dialética sobre quem paga o quê e onde está o consumidor. Há aqui muitas questões e a existência de um fair share é a discussão do momento", refere. E admite que esta discussão está mesmo "a influenciar e a complicar os debates em torno de uma human centric internet".
Questionado sobre o que falta para o país alcançar uma cobertura total com redes de alta velocidade, Pedro Mota Soares salienta que houve um enorme investimento por parte dos operadores na infraestrutura, hoje ao nível das melhores na Europa. Reconhece que o quadro legal ajudou, ainda que seja necessário fazer revisões pontuais, nomeadamente para garantir uma aplicação igual em todo o país.
Mas, para se alcançar uma cobertura total do país falta ainda cobrir as chamadas zonas brancas, onde não há interesse comercial nem rentabilidade para o investimento. Aqui, defende que o que faz sentido é haver investimento público, nacional e comunitário. O processo está em curso, ainda que atrasado. Sendo um dos maiores desafios do setor. Mas deixa claro que os operadores continuam a fazer os seus investimentos, que são muito elevados.
O tema do fair share voltou a ser destacado por Helena Martins, no âmbito de um ecossistema digital que é incontornável, quando questionada sobre o futuro na ótica da Google. Reiterando que a relação entre empresas de tecnologia que desenvolvem serviços, aplicações e conteúdos é simbiótica com os operadores de telecomunicações, deixa claro que têm as primeiras têm "investido triliões no desenvolvimento de serviços, como a IA ou a cloud, para que se tornem mais interessantes e úteis para os utilizadores. E para que estes tenham interesse em adquirir um plano para ter acesso a esses serviços. Cada um tem já a sua contribuição justa e os modelos de negócio são complementares".
Destaca ainda os investimentos em infraestruturas, como os cabos submarinos Equiano e o Nuvem, a partir de Portugal, projetos sempre em parceria com parceiros locais, nomeadamente em telcos. "Há uma relação complementar, para que nós, como utilizadores tenhamos acesso a esta quantidade de soluções e serviços, através das redes. Estamos num momento de inflexão no desenvolvimento tecnológico e é dificil prever onde estaremos dentro de alguns anos", salienta.
E os "desafios que o setor tem pela frente são tremendos", acrescenta o responsável da Apritel. O "tráfego cresce em média 27% ao ano e quase 80% tem a ver com serviços de streaming. A utilização das redes cresceu brutalmente, o que significa fazer mais investimento. Temos de encontrar uma situação de equilíbrio para responder ao que temos pela frente, que todos possam contribuir de forma justa e equitativa. A dificuldade é real, os operadores vêm os seus preços médios a descer, enquanto as big tech vê as receitas a subir. A preocupação é não ficar pior do que hoje estamos. O problema é real e não teórico".
PROGRAMA
09h30 | Boas Vindas | |
Fernando Resina da Silva - Sócio da Área Comunicações, Proteção de Dados & Tecnologia, Sócio Responsável da Área PI Transacional, VdA Sandra Fazenda Almeida - Diretora Executiva, APDC | ||
09h35 | Pacote Conectividade - acelerar a rede gigabit na UE | |
João de Araújo Ferraz - Associado da área de ICT, VdA - Apresentação | ||
09h50 | Debate | |
Ana Amoroso das Neves - Head of the Internet Governance Office, FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia Moderação: | ||
11h00 | Encerramento |
ORADORES