Garantir um governo digital é muito mais que pôr tecnologia na Administração Pública. Tudo depende das pessoas, instituições, processos e cultura, implicando um verdadeiro contexto de mudança. O potencial do GovTech na Justiça é enorme e multiplicam-se os exemplos de sucesso, na Europa e em Portugal, que o comprovam. Há um vasto conjunto de desafios a endereçar, até de perceção, numa área essencial para a soberania e a democracia. Trabalhar em ecossistema e com inovação, promover a literacia jurídica, criar standards, formar pessoas, centrar no cidadão, apostar na transparência e na prestação de contas são alguns dos passos a dar, num processo de mudança que requer ainda um longo trabalho.
Refletir sobre a transformação digital da Administração Pública em Portugal é o objetivo da iniciativa GovTech. Trata-se de um "contributo para acelerar a transformação do Estado e a melhoria da qualidade de serviços, assim como para promover o aumento e a intensificação da colaboração entre o ecossistema empresarial e os responsáveis do setor público", como afirmou na abertura deste primeiro GovTech, dedicado à Justiça, a Diretora Executiva da APDC.
Para Sandra Fazenda Almeida, a meta é inspirar todos os envolvidos no ecossistema, até porque "a transformação digital na Justiça tem sido um dos maiores desafios. Vai precisar, acima de tudo, de colaboração. Temas como a interoperabilidade, a segurança e a adoção tecnológica vão continuar a condicionar as entidades envolvidas".
Mais do que tecnologia, falar de GovTech implica falar sobretudo de pessoas, instituições, processos e cultura na Administração Pública-. Trata-se de "todo um contexto de gestão da mudança dos governos para o digital, que vai muito além do relacionamento do setor público com o ecossistema de parceiros", como começou por salientar João Ricardo Vasconcelos.
COLABORAÇÃO EM ECOSSISTEMA
Num painel sobre 'GovTech na Europa: Fatores-Chave e Requisitos para o Sucesso', o Senior Governance Specialist e GovTech Global Partnership do Banco Mundial destacou que a organização interage com países de todo o mundo e trabalha há décadas na área da digitalização do setor público. Da sua experiência, "é a componente não digital, que depende das pessoas, dos processos e das instituições, que representa o maior desafio " e "uma permanente viagem".
No âmbito da GovTech Global Partnership, estabelecida em 2019, o Banco Mundial colocou à volta da mesma mesa diversos parceiros vindos de todo o mundo, seja de organizações internacionais, governos e representantes do setor privado. A meta tem sido abordar as perspetivas dos diferentes atores, partilhar conhecimento e encontrar sinergias em temas como a interoperabilidade, tecnologias como a inteligência artificial ou a ligação entre as agendas verde e digital, entre outros.
No caso da Justiça, assegurou que os benefícios e a importância da transformação digital são claros, desde o acesso dos cidadãos a temas como promover a transparência, garantir a consistência das decisões judiciais, reforçar a confiança nas instituições do sistema judicial ou aumentar a previsibilidade na tomada de decisões, passando por temas de cooperação transfronteiriça. Assim, têm sido partilhadas informações e experiências para garantir uma Justiça cada vez mais eficiente e inclusiva.
E citou exemplos como o da Croácia, onde a criação de um sistema integrado de gestão de processos trouxe uma aceleração, aumento de eficiência e benefícios económicos substanciais. Ou, no México, onde um projeto de análise preditiva teve um impacto muito substancial nas decisões judiciais e na eficiência. E de Nova Iorque, que implementou um simples sistema de lembretes dos SMS, que reduziu em 22% as ausências nos tribunais.
Mas a "digitalização dos sistemas judiciais é um desafio permanente" e muito continua por endereçar. Desde o tema das tecnologias e infraestruturas inadequadas aos sistemas TIC complexos, passando pelos entraves à conetividade e à interoperabilidade, ou pela necessidade de formação e reforço de capacidades e pela falta de recursos financeiros. Referiu ainda que persiste uma perceção negativa que afeta a confiança dos cidadãos nas soluções digitais.
Para endereçar estes desafios, é essencial o "estabelecimento de parcerias, colocando à volta da mesa todos os atores", responsáveis dos setores público e privado, Academia e sociedade civil. Só assim se garantirá garantir uma "digitalização sustentável da Justiça", até porque conseguir garantir serviços acessíveis e de fácil utilização, centrados nos cidadãos, "é uma batalha" tal como investir nas competências digitais dos funcionários públicos.
Para endereçar estes desafios, foi criado há poucos meses pelo Banco Mundial o Grupo de Trabalho de Justiça Digital. Aprendizagem colaborativa, partilha de conhecimento, construção comunitária e resultados codesenvolvidos são objetivos do projeto, que envolve cerca de 30 atores de diversos países. Com base no trabalho que está a ser desenvolvido, deverão ser ainda desenvolvidas este ano várias iniciativas de governo digital, incluindo na Justiça.
A transformação digital da Justiça em Portugal é um processo que Pedro Tavares conhece bem. Até porque o liderou até ao início do ano passado, como secretário de Estado da Justiça. O agora consultor sénior para a governação e política digital reiterou neste evento a necessidade de modernizar o setor público, para garantir maior competitividade e eficiência: "este é um tempo em que para termos melhores serviços públicos e melhores democracias, temos de ter instituições mais fortes. No caso da Justiça, uma das bases do estado de direito, é fundamental".
E se a Europa é, assim como Portugal, um dos exemplos de digitalização do Estado, pois começou cedo este processo, há áreas a precisarem de grandes melhorias. É o caso dos dados abertos, onde o nosso país ainda tem muito que evoluir e há muitas oportunidades. Todos os anos, de acordo com números do Fórum Económico Mundial, são gastos em TI no setor público no mundo 30 mil milhões de dólares e este mercado deverá crescer 8% ao ano até 2034, alcançando o valor da ordem dos 600 mil milhões de dólares.
O país tem provas dadas dos benefícios da digitalização na Justiça. Só o projeto do Tribunal+, que incluiu mais de 55 interoperabilidades e um novo sistema de gestão de processos, permitiu a redução do volume de processos pendentes de 1,7 milhões em 2013 para 560 mil em 2023. Mas o processo de mudança requer ainda um longo trabalho, na opinião de Pedro Tavares. Nomeadamente ao nível da aposta na transparência e na prestação de contas das instituições públicas, numa altura em que a confiança dos cidadãos está a recuar. Sendo a disponibilização de serviços alta, mas com um nível de utilização baixo, tendo em conta as barreiras tecnológicas e os problemas de literacia.
"Temos de ser mais tecnológicos, mais digitais e saber usar as ferramentas. Mas a complexidade dos casos e a sua interligação é uma dificuldade. A eficiência na Justiça é fundamental e ganhos potenciais do GovTech são enormes", defendeu Pedro Tavares, deixando claro que tanto na Europa como no nosso país terão de "conseguir atrair o desenvolvimento de novos projetos e serviços", para "ir mais longe".
"Há todo um conjunto de barreiras que temos de conseguir ultrapassar. A CE tem estado a fazer um trabalho mais forte, centrado num verdadeiro mercado europeu, para que isto possa acontecer de forma mais rápida e mais ágil. Os standards começam pela base, pela infraestrutura pública digital e, por cima dela, estão todos os serviços que devem ser feitos. Ao construir esta base temos um potencial grande para trabalhar", assente na criação de um ecossistema comum.
PROCESSO SEMPRE EM CONSTRUÇÃO
No debate que se seguiu, com o tema ‘Soluções Inovadoras para o sistema da Justiça', ficou claro que, também aqui as pessoas estão no centro de tudo, assumindo um papel fundamental. A standartizaçao de procedimentos ao nível comunitário, assim como a adoção de estratégias para fomentar a literacia na justiça e para combater a perceção generalizada sobre a morosidade no acesso foram também apontados como caminhos prioritários. E se Portugal tem já projetos que mostram resultados, o facto é que não estão a ser usados para potenciar a inovação no setor.
Numa altura em que se abrem novas portas, com a aceleração tecnológica e o consenso de que é preciso, cada vez mais, trabalhar em ecossistema e em colaboração, Marisa Monteiro Borsboom destaca a necessidade de conseguir "ajustar as linguagens de todos os envolvidos" na cadeia de valor, assim como definir regras standard para quem está no mercado de uma forma transparente e com responsabilidade".
A vice-presidente da European Legal Technology Association (ELTA), uma associação sem fins lucrativos de origem alemã, diz que, tendo em conta a sua experiência ao nível europeu, há que olhar para o papel das ONG's e da sociedade civil. Neste momento de "quase retrocesso", tem se se apostar no "talento humano, ajustado ao que é a capacitação tecnológica que nos permite fazer muito mais e muito melhor".
Já António Bob dos Santos, vogal do Conselho Diretiv da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), salienta que a atual perceção de corrupção na Justiça nacional impede a verdadeira cultura de colaboração. É que "não podemos ter um país inovador, que faz investigação centrada na resolução de problemas concretos, se as pessoas não colaborarem umas com as outras". Acrescem problemas como a morosidade que ainda persiste nas decisões, a falta de recursos financeiros, materiais e de competências, assim como uma capacidade de acesso desigual da sociedade. Contudo, "há um conjunto de orientações de políticas públicas, que podem ajudar a dar resposta a muitos dos problemas identificados".
A estes desafios, Ana Marques acrescenta o problema da literacia em Justiça. Para a advogada, especialista em tecnologias e setor público, este tema precisa de ser endereçado. E não está a ser aproveitado o que já foi feito, nomeadamente a plataforma de atendimento à distância, criada durante a pandemia, e, entretanto, suspensa. Ou o regime legal que permite a criação se zonas livres tecnológicas: existem apenas duas, não se estando a beneficiar de todo o potencial de inovar através destas verdadeiras sandboxes regulatórias. "Temos em cima da mesa formas de inovar na justiça, até do ponto de vista legal. E ficamos sempre com a sensação de que falta qualquer coisa", comenta.
Do ponto de vista de uma startup que desenvolve soluções tecnológicas avançadas para o setor público, a visão sobre a digitalização da Justiça não é muito diferente. Guido Santos, Co-Founder e CEO da Genesis Digital Solutions, concorda que falta literacia jurídica às pessoas e que a percepção é que há ainda pouca tecnologia na Justiça. Na sua perspetiva, "há falta de informação e visibilidade sobre o que já existe".
Estando sediada na Holanda, Marisa Monteiro Borsboom destaca os bons resultados da iniciativa GovTech NL. Lançada há cerca de um ano, já fez muito pela literacia digital e tecnológica e pelas informações ao cidadão. Nomeadamente através da divulgação de boas práticas, que poderão também beneficiar outros países, ajudando ao processo de mudança.
No mercado nacional, António Bob dos Santos salienta que foram desenvolvidas nos últimos anos iniciativas que envolvem todos os protagonistas e utilizam tecnologias como a IA ou o machine learning. E o trabalho da FCT passa por reforçar esse caminho, numa estratégia de aproximação da Academia à AP, tirando partido do conhecimento para responder aos problemas. É que, na sua perspetiva, há muito conhecimento a ser produzido nas mais 300 unidades de investigação nacionais e nos laboratórios do Estado, que envolvem mais de 60 mil investigadores.
Neste âmbito, a FCT está a desenvolver os mais variados projetos na AP, em áreas como a Defesa, a Saúde, a Educação ou a Justiça. Incluindo apoios à contratação de doutorados ou a formação de talento no setor público. E criaram em janeiro o Centro Nacional de Computação Avançada, no âmbito do PRR, para permitir ao país tirar partido de todos os benefícios da computação avançada e da enorme capacidade de calculo, assim como do acesso às recém-criadas fábricas de IA europeias.
E ainda que persistam dificuldades no acesso aos dados, Ana Marques refere que já existem muitos bons exemplos, como a plataforma de interoperabilidade da AMA, que respeita o princípio once only e traz benefícios para privados e as entidades públicas. Sendo os dados que a Justiça gera de "particular relevo e interesse", considera que projetos como a anonimização de sentenças podem gerar imenso valor acrescentado, porque se detetam tendências e se analisar jurisprudência. Mas destaca "as pessoas como o pilar base", exemplificada com a criação do Lab Justiça,i niciativa de capacitação de dirigentes para a mudança, com partilha de boas práticas. É que "atransição digital não se faz sem pessoas. Por isso, é preciso replicar este projeto nas demais áreas governativas".
Um dos caminhos para a mudança na AP passa por se trabalhar cada vez mais com startups inovadoras. Mas Guido Santos diz que ainda persiste um grande obstáculo, que é contratação pública, um processo exigente e moroso mais virado para a capacidade das grandes empresas. Para uma startup ou uma PME é sempre um obstáculo, pelo que defende uma alteração das regras, "porque se trata de um mercado muito grande, que não está a ser aproveitado".
PROGRAMA
08h30 | Pequeno-almoço
09h00 | Boas-Vindas
· Sandra Fazenda Almeida - Diretora Executiva, APDC
09h05 | GovTech na Europa: Fatores-Chave e Requisitos para o Sucesso
· João Ricardo Vasconcelos - Senior Governance Specialist, GovTech Global Partnership, World Bank
· Pedro Tavares - Senior Digital Governance and Policy Advisor, Former Secretary of State for Justice of Portugal
09h30 | Soluções Inovadoras para o sistema da Justiça
· Ana Marques - Of Counsel/Lawyer - TMT, Public Sector
· António Bob dos Santos - Vogal do Conselho Diretivo, FCT
· Guido Santos - Co-Founder & CEO, Genesis Digital Solutions
· Marisa Monteiro Borsboom - Vice President, European Legal Technology Association (ELTA)
Moderadora:
Sandra Fazenda Almeida - Diretora Executiva, APDC
10h30 | Encerramento
Formação presencial volta a centrar-se no tema ‘Aumente a sua produtividade com IA'
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