A nova realidade que resultou da pandemia do COVID-19 trouxe às organizações múltiplos desafios em todas as frentes. É que a regulação interna e externa não estava nem preparada nem pensada para uma situação sem precedentes como a que vivemos. Quer do ponto das obrigações jurídicas nas várias áreas, nos seguros ou na forma de funcionamento e de relacionamento no mercado, não restam dúvidas que terão de ocorrer muitas alterações e readaptações aos novos tempos. Nada ficará como dantes, a começar pelos temas laborais, como ficou claro neste webinar sobre "Direitos & Obrigações em tempo de desconfinamento".
Citando o secretário-geral da ONU, para quem "a pandemia é o maior desafio para as organizações desde a 2ª guerra mundial", Maria de Lurdes Gonçalves, Associada Senior da VdA, considera que a situação atual é "absolutamente excecional, sem precedentes e altamente disruptiva. Mudou completamente o business as usual e obrigou as empresas a uma rápida reorganização e adaptação. Primeiro ao teletrabalho, agora ao regresso a um novo normal".
Com a certeza de que "a sociedade já não é a mesma e há mudanças que vieram para ficar, seja ao nível da forma como se organiza o trabalho, seja na utilização generalizada que se faz da tecnologia ou a própria gestão das organizações", destaca que este novo normal "traz desafios para os empregadores, aos trabalhadores e aos terceiros. Todos eles têm de se saber adaptar a um novo standard, revendo formas de atuação e limites e restrições. Ou seja, reinventarem-se".
Em os desafios em termos jurídicos são vários, seja ao nível do teletrabalho, da privacidade e das tecnologias, estando ligados à retoma da atividade e a um novo paradigma de gestão. Assim no teletrabalho, que deixou de ser obrigatório a 1 de junho, poderá ser mantido por quem o queira, desde que seja respeitado o regime legal tradicional em vigor, e haja acordo entre o empregador e o trabalhador. Já ao nível da rotatividade das equipas, a empresa tem em regra a faculdade de definir o horário de trabalho. E no trabalho remoto, poderá controlar os horários através de soluções tecnológicas, garantindo também sempre o direito ao direito ao desligamento do colaborador. Na progressão na carreira, a advogada assegura que os diretos e obrigações são os mesmos que no trabalho presencial.
Já no tema da privacidade e proteção de dados, a lei prevê um direito geral que implica direitos e deveres para trabalhadores e empregadores. Contudo, nesta situação excecional. Há um conjunto de orientações da DGS no regresso às atividades que são transversais a todas as empresas e que têm de ser implementadas. No seu âmbito, as organizações podem recolher dados pessoais no âmbito dos seus planos de contingência, desde que assegurem o cumprimento das regras legais aplicadas. Há ainda que saber acautelar os riscos da cibersegurança, outro dos desafios jurídicos da atual conjuntura. Para esta responsável, tem se regular a utilização dos recursos eletrónicos da empresa e da própria segurança da informação.
Todas as empresas terão, por isso, de tomar várias medidas estratégicas e operacionais. A começar pela definição de um plano de regresso às instalações, com a revisão do seu plano de contingência e a adoção de medidas proporcionais, necessárias e adequadas à retoma das atividades. Importante é também constituir uma equipa multidisciplinar, que fique responsável pelo desenvolvimento, implementação e monitorização do plano de regresso.
"É preciso regular e antecipar as questões desta nova realidade. A regulação interna e externa que existia em termos laborais não está de todo pensada nem preparada, pelo que é o momento de as empresas olharem para dentro da sua organização e perceberem se os seus instrumentos de regulação do trabalho precisam ou não de ser adaptados. Este sim, é um grande desafio e vai marcar os próximos tempos da vida das organizações, pelo menos do ponto de vista mais jurídico", conclui.
Todas estas preocupações jurídicas tiveram impacto no mundo das seguradoras, sobretudo quanto ao tema do teletrabalho, no que respeita ao ramo dos seguros obrigatórios, como os acidentes de trabalho. Anabela Araujo, CBO da AON, explica que no arranque da pandemia a APS veio garantir que, de forma automática, os acidentes de trabalho passavam a abranger o teletrabalho, desde que este decorresse de uma imposição da autoridade ou da entidade patronal. Confrontadas com a resolução do Conselho de Ministros de 29 de maio, de regresso ao regime tradicional, que exige consentimento dos colaboradores para o trabalho remoto, as seguradoras acordaram que a cobertura automática se mantinha até indicações em contrário.
Aconselha as organizações a pensarem a questão de fundo, devendo começar a abordar as seguradoras de uma forma estruturada sobre a forma como querem ter o seu trabalho organizado em concreto. Especificando o que pretende em termos de trabalho remoto e a forma como é feito, de forma a ficar claro nas apólices. "As seguradoras seguram o risco, pelo que têm de saber onde está o risco e saber avaliá-lo. Mas sejam inteligentes a abordar as seguradoras", destaca.
Já quanto aos demais seguros, que não são obrigatórios, refere que com a quebra de atividades, as empresas contactaram as suas seguradoras para minimizar os custos as apólices, "quando o risco é neste momento muito maior do que antes, quando se trabalhava fisicamente na empresa". Anabela Araujo não tem dúvidas de que haverá "um endurecimento do mercado, sobretudo no que respeita a seguros de cibersegurança, porque o risco passou a ser abissal, com o recurso massivo ao digital. É uma área que onde a sinistralidade vai aumentar".
Não tendo dúvidas de que o teletrabalho veio para ficar, apesar de pelo menos 60% das empresas ainda não disporem de políticas de trabalho remoto, Nuno Carvalho, Sócio da Deloitte Portugal, destaca que o processo de regresso ao novo normal terá de ser feito em segurança e com um nível de acompanhamento adequado. Cada vez mais, o bem-estar dos colaboradores tem de ser uma das principais preocupações das organizações, e estas têm de ter em conta temas como a natureza do trabalho, quem faz o quê e onde pode ser realizado o trabalho.
Perante uma nova realidade, está convicto de as organizações estão a ver todas as questões de uma forma estrutural e que o futuro vai passar pela adoção de modelos de trabalho com recurso crescente à tecnologia, como a robotização, a inteligência artificial ou os sistemas cognitivos.
Miguel Almeida, General Manager da Cisco Portugal, considera que vivemos uma fase de grande transformação, que é muito mais do que apenas colocar as pessoas a trabalhar em casa com tecnologia. O gestor refere que no caso da subsidiária, de um dia para o outro colocou 650 pessoas a trabalhar a partir de casa, sendo a preocupação imediata a de dar os meios de que dispunham na empresa, garantindo em simultâneo a segurança e a virtualização dos sistemas.
Já esta fase de regresso ao escritório, num grupo presente em todo o mundo, com 280 mil colaboradores, destaca a enorme complexidade do processo, tendo em conta o elevado número de subsidiarias e as diferentes estratégias e medidas tomadas ao nível de cada país. Mas há elementos essenciais a ter em conta, como a resposta ás determinações legais dos governos e entidades de saúde, a definição de uma politica de implementação de regras e a vontade dos colaboradores de regressarem ou não ao trabalho presencial.
Para já, e no que respeita a Portugal, foram definidas 4 fases, sendo que na primeira apenas regressam as pessoas críticas e a última marcará o regresso de todos, o que só deverá acontecer em outubro. Explica que antes do regresso, todos terão de fazer um curso online sobre as medidas a adotar e que a Cisco criou mesmo uma aplicação onde as pessoas registam os seus dados de saúde.