A Agenda digital veio para ficar na Justiça. Mesmo num cenário de redução drástica de custos e num contexto orçamental complicado. Há um rumo, projectos e resultados. O que foi possível através da implementação do novo modelo de governance das TIC no sector. O processo está em curso, com uma estratégia bem definida, com respostas em relação a decisões que têm de ser tomadas em matérias difíceis. E há agora que garantir o comando, o controlo e a monitorização adequadas a este novo sistema, que permitirá ter verdadeiramente tribunais do século XXI. A mensagem foi do Secretário de Estado da Justiça e Modernização Administrativa.
José Magalhães, que falava na sessão de abertura do Workshop "Dos Operadores de justiça aos Cidadãos: uma Justiça Eficaz", no âmbito do Ciclo APDC: para uma Administração Pública do Século XXI, destacou que "sem um bom modelo de governance não há eficácia, mesmo que haja rumo e dinheiro". O governante defende que a margem para a inovação no sector da Justiça é enorme, existindo já muitas ferramentas de trabalho inovadoras em todos os serviços judiciais. Uma das áreas a reforçar agora será a do Ministério Público, onde se terá de agir para criar uma "verdadeira investigação 2.0".
Os meios para esta "revolução" na Justiça existem, tendo sido criada uma linha especial de financiamento no âmbito do QREN e estando em constituição a criação de um fundo de investimento para a Justiça. "A consciência de que para a Agenda Digital da Justiça temos meios é uma condição mobilizadora. Porque se traduz em projectos concretos. E há uma enorme vontade de realização", destaca.
Sendo a Justiça um valor essencial do Estado de Direito e vital para o fortalecimento da democracia e o desenvolvimento económico e social, o sector deverá ser cada vez mais eficaz nas suas múltiplas vertentes. E as TIC poderão contribuir de forma decisiva para a criação de um sistema de qualidade. E há que garantir um modelo de governance das TIC na Justiça que permita assegurar os princípios do Estado de Direito. Um processo que já está em curso, como destacou o presidente da APDC.
Para Diogo Vasconcelos, as TIC já mudaram muitas áreas na Justiça, nomeadamente a investigação criminal. E surgem novas questões, como a protecção da vida privada e a protecção dos dados pessoais ou ainda a criminalidade informática. E não tem dúvidas de que, se já muito se evoluiu, é também necessário repensar muitas das soluções. Determinando de que forma é que se poderá promover a inovação nesta área crucial.
Novo modelo de governance
Foi exactamente sobre a implementação do "Novo modelo de governance das TIC na Justiça" que se debruçou um painel composto pelos responsáveis pelas várias áreas do sector, moderad por Fernando Resna da Silva, da VdA, o responsável pela organização deste encontro. Isto depois de duas apresentações de oradores internacionais: Margaret Tuite, da Direcção Geral da Justiça da Comissão Europeia, que explicou o processo de implementação da e-Justiça no espaço comunitário, e de Cengiz Tanrikulu do Ministério da Justiça da Turquia, que explicou o caso concreto do modelo de justiça digital naquele país.
Sendo o enquadramento legal que suporta no novo modelo de governance das TIC na Justiça dado pela Lei 34/2009, o seu processo de implementação arrancou concretamente no início de 2010. E teve como objectivo uma maior celeridade na construção e disponibilização de ferramentas das TIC no sector. A lei define claramente quais as responsabilidades no desenvolvimento do processo, conjugando-se depois com as leis orgânicas de cada organismo judiciário. Bruno Sá, presidente do conselho directivo do ITIJ, organismo responsável pelo processo, admite que há problemas complicados de integração a resolver, mas garante que será feito. Este ano, o organismo tem um orçamento recorde de 20 milhões de euros para o desenvolvimento do projecto. Mas os recursos são finitos e há que os saber gerir.
Para isso, é necessária uma parceria com os vários operadores da Justiça, que tem de ser aprofundada. Mas tem sido possível dialogar, permitindo avançar com celeridade em várias frentes e com resultados. Sempre tendo em atenção os utilizadores, que " têm um papel importantíssimo e determinante na boa construção e uso das aplicações TIC na Justiça". Para Bruno Sá, "precisamos de uma nova rede, com mais capacidade, com mais segurança, com mais encriptação, e de uma actualização dos postos de trabalho"
Todos os comentadores desta sessão concordam em que o modelo de governance das TIC na Justiça está bem construído e responde, em teoria, às necessidades do sistema. Mas o problema é a sua operacionalização, como salientou Francisca Van Dunem, Procuradora-Geral Distrital de Lisboa. É preciso diálogo institucional entre os vários organismos, uma verdadeira integração de sistemas. Mas admite que com o novo modelo se deu um enorme salto, face a uma realidade que funcionava por ilhas. Só que "são as pequenas dificuldades do quotidiano que se traduzem em grandes problemas. E acabam por gerar desmotivação". Por isso, a interoperabilidade dos sistemas é absolutamente essencial.
Também Luísa Proença, chefe da área de projectos e inovação da Polícia Judiciária, entende que o modelo funciona e é adequado. Mas receia como se irão resolver os problemas internos do sector judicial. "Na investigação criminal, o modelo de governance tem algumas dificuldades, que se prendem com a parte cultural e de decisão". Acrescem os problemas de acesso à informação desmaterializada e a falta de confiança neste processo. Para que se avance com eficácia, é preciso que as tecnologias estejam alinhadas com as estratégias dos órgãos de topo. Porque se encontram "paredes por todo o lado dentro das organizações judiciárias"
Fernando Ventura, director-adjunto do Centro de Estudos Judiciários, entende mesmo que se está num momento de charneira. Há vários sistemas e aplicações e muita ausência de diálogo. É preciso "encontrar uma unidade no sistema judicial", com uma maior transversalidade do modelo de governance, respeitando sempre a diversidade dos organismos. A partilha de responsabilidades, que permita a abertura a todos os agentes do sistema, é outra condição de base. Senão "não chegaremos a lado nenhum. Temos de ter um diálogo positivo e profícuo no sentido de graduar as respostas às necessidades concretas do sistema judicial". Porque o fundamental é a resposta com qualidade do sistema judicial ao cidadão.
Raquel Prata, da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, destaca também a importância em todo este processo não só da mudança de visão dos operadores judiciários mas também do próprio cidadão. A "instalação dos TIC nos tribunais implica uma mudança de paradigma. É um salto inevitável que implica profundas mudanças nos juízes e nos cidadãos". Pelo que há que encontrar um "novo modelo de Justiça", onde se valorize a formação dos juízes na utilização das TIC. E hoje, os juízes portugueses "nada sabem" sobre as virtualidades do modelo de governance. Que, na óptica destes, "tem uma desconformidade democrática. Preocupa-nos a gestão de toda a informação judicial sem uma perspectiva democrática".
As críticas vieram também de Fernando Sousa Marques, subdirector-geral da DGAJ. "O problema em Portugal não é a inexistência de lei mas a falta da sua aplicação. A actual lei é um bom modelo enquadrador, mas falta a sua aplicação". Salientando que a DGAJ tem tido enormes limitações e obstáculos para satisfazer necessidades do sistema judiciário, adianta que os stakeholders do sistema judiciário não são apenas parceiros. São também igualmente responsáveis pelo programa.
Inovação e investigação criminal
O tema da "Inovação na Justiça" deu o mote ao arranque da discussão do tema "Investigação Criminal 2.0" . Anton Shelupanov, da Young Foundation, não tem dúvidas de que no sector da Justiça não existe falta de capacidade de inovação. E num ambiente de colaboração, como o do sistema judicial português, há um terreno fértil para a inovação. Mas, para que surjam soluções inovadoras, há que criar um espaço de experimentação, o que ainda falha no sistema criminal europeu. Tom van Engers, do Leibniz Center for Law, destaca ainda que a tecnologia só é útil se for alinhada com as necessidades estratégicas.
E qual a situação da Investigação Criminal 2.0 em Portugal? As TIC trouxeram a esta área inúmeras ferramentas cruciais, mas também geraram novas tipologias de crimes. Carlos Farinha, da Polícia Judiciária Cientifica, destaca que a "facilidade com que hoje vivemos graças às TIC nunca nos deve afastar das regras e princípios que norteiam a sociedade". E o mundo digital, sendo hoje uma realidade incontornável, trouxe consigo novas práticas criminais baseadas na tecnologia. Este responsável acredita que o que se está a passar na investigação criminal não é mais do que um reflexo do que se está a passar na sociedade. Ainda não existe a cultura de protecção na utilização das novas tecnologias, que tem sempre que existir sob pena de se correrem riscos.
José António Barreiros, da Ordem dos Advogados, salienta mesmo que a crescente digitalização e os meios físicos de conservação da informação digital podem levar à devassa da vida privada. Porque, como afirma Miguel Romão, da Faculdade Direito da Universidade de Lisboa, estamos numa sociedade conservadora que cria os processos mas que muitas vezes não os segue. Hoje, não há dificuldade na incorporação da tecnologia. O problema é geri-la. E, do ponto de vista da investigação criminal, é determinante a forma como se lida e utiliza a tecnologia.
A ausência de protecção da privacidade começa a ser, para Carlos Campos Lobo, da Comissão Nacional de Protecção de Dados, "assustador e preocupante". Cada vez mais temos "meio mundo a controlar o outro meio", com um vasto número de entidades que recolhem, transmitem e interligam a informação das pessoas. E se há legislação que regula estas matérias, também há diariamente violação das regras.
José Pacheco Pereira, conhecido Deputado e Comentador Político, destaca a erosão crescente da privacidade e, em consequência disso da identidade, com a crescente utilização das TIC. É que se há a ilusão de que existe segurança naquilo que se transmite por via digital, ela não existe de facto. Mais: a cultura de privacidade está a desaparecer nas gerações mais novas, cada vez mais digitais. Mas alerta para o facto do uso da tecnologia ser sempre um instrumento de controlo, muito mais do que de mera comunicação, permitindo uma intrusão muito significativa na vida das pessoas. "É muito difícil garantir a identidade em sociedades onde tudo se sabe ou se pode saber", destaca, acrescentando que hoje é fácil actuar para além da lei na utilização das TIC.
O tema da videovigilância foi citado como um dos casos mais paradigmáticos de intrusão na privacidade. Esta é uma área onde há enormes consequências no controlo do cidadão e não existem ainda nenhuns mecanismos de segurança no controlo sobre este sistema.E Pacheco Pereira entende mesmo que a videovigilância é apenas o início, porque vamos passar para a vigilância total, que já é possível nomeadamente através dos telemóveis. "Caminhamos para uma sociedade em que os factores de identidade essenciais na sociedade democrática e livre estão a desaparecer", destaca.