Ninguém tem dúvidas de que a literacia mediática está na ordem do dia, numa altura em que a desinformação e as fake news crescem de forma avassaladora. As políticas públicas são essenciais para endereçar este enorme desafio, que assume proporções sem paralelo em tempos de enorme polarização e instabilidade geopolítica, como a que vivemos hoje. Mas o que faz a verdadeiramente a diferença são as parcerias entre stakeholders, como mostram as muitas iniciativas já em curso, no país e na Europa. A tecnologia, que traz muitos riscos, deve ser usada como parte da solução e como ferramenta para o bem-comum.
O desenvolvimento do raciocínio crítico das pessoas sobre os conteúdos, com capacidade para compreender a sua origem e perceber se são confiáveis e de que forma podem ser utilizados, é hoje essencial, perante a multiplicação das fake news e da desinformação. O alerta foi dado pelo presidente da APDC na sessão de abertura do Digital Business Breakfast sobre "Media Literacy & Public Policies in Portugal", em parceria com a Google.
"São capacidades que temos que ensinar a esta nova geração de humanos que estamos a criar agora. Mas também a todos, que têm de as aprender a uma velocidade muito superior", adianta Rogério Carapuça, salientando que se trata de um desafio que ocorre numa altura em que algumas das capacidades humanas distintivas, como a empatia ou o compromisso, foram "muito diminuídas" com a pandemia e estão também a ser afetadas com a situação geopolítica atual. Pois isso, discutir "como é que as políticas públicas, enquanto instrumento de alteração da sociedade, podem desempenhar o seu papel, não impedindo naturalmente a inovação, mas criando salvaguardas para que isto se faça de uma forma de melhor qualidade e com mais confiança, é essencial".
Também a Google compreende bem a importância crucial de promover literacia mediática. Como começou por salientar Bernardo Correia, Country Manager da Google Portugal, "é importante construir uma sociedade informada e reforçar a confiança online" e a tecnológica tem apostado em "apoiar esse desígnio. Com uma abordagem que tem sido sempre, simultaneamente responsável e arrojado. Não podemos ser competitivos no mercado sem sermos arrojados e não podemos ser vistos como parte da solução sem sermos responsáveis".
Por isso, uma das prioridades tem sido o foco no desenvolvimento de ferramentas de segurança com recurso à inteligência artificial, para ajudar as pessoas a avaliar a credibilidade dos conteúdos online. Sendo a importância da fiabilidade de informação cada vez mais vital para a segurança das democracias, a abordagem da tecnológica é a de "construir os produtos sempre com a qualidade em mente", um "desígnio principal", como lhe chama Bernardo Correia. Seja na qualidade do modelo de busca, na qualidade dos algoritmos, ou na qualidade da informação e a sua pluralidade.
É preciso ainda, como explica, "criar estas ferramentas que sejam fáceis de usar. Temos de ser universais, de funcionar para todas as idades, grupos etários e níveis de educação. Fornecendo o contexto que as pessoas precisam para decidir naquilo que confiar online". Trata-se de um trabalho que "está longe de ser concluído, porque é complexo e sempre em movimento. Por isso, estamos empenhados em trabalhar colaborativamente". Sendo a tecnologia uma "ferramenta incrível", não chega. É preciso combiná-la com a educação e com a colaboração.
Destaca que a Google há mais de 20 anos que tem vindo a apoiar a indústria de notícias, incluindo em Portugal, com milhares de milhões de euros para promover o jornalismo na era digital. No mercado nacional, têm vários projetos, como: o programa Super Reserchers, em parceria com a Miúdos Seguros na Net; o IMPULSO IA, com a APDC; o Media Competence Center, com a Associação Portuguesa da Imprensa; ou o Fundo Europeu para os Media de Informação, co-gerido pela Fundação Gulbenkian.
E o Governo está apostado em trazer uma nova dinâmica à literacia digital em Portugal. Sendo a desinformação e as fake news um fenómeno que já não é de hoje, os novos instrumentos trazidos pela digitalização, que estão ao alcance de todos, agudizaram e aceleraram de forma vertiginosa o problema. "É um facto que, hoje, mesmo um observador atento e informado tem dificuldades em distinguir, muitas vezes, se uma notícia tem ou não correspondência com a verdade. Qualquer um de nós pode ser enganado", garante o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, que encerrou a sessão de abertura.
Para criar instrumentos de fact-checking, o Executivo avançou em outubro com um plano, no âmbito da estratégia para a comunicação social. Que assenta nos princípios básicos da liberdade de imprensa, de opinião e de expressão, com uma comunicação social plural. E numa lógica do ‘back to the basics', do Estado de Direito e da democracia, como adianta Carlos Abreu Amorim, num momento em que a comunicação social portuguesa atravessa "uma profundíssima crise".
Assim, foi criado o Plano Nacional de Literacia Mediática, que foi esta manhã discutido em Conselho de Ministros. E que preconiza medidas como a oferta aos jovens entre os 15 e os 18 anos de uma assinatura digital gratuita de um meio de comunicação social generalista ou económico por dois anos. Objetivo: fomentar o conhecimento e interesse pela leitura de media. Ou ainda o financiamento em 50% de assinaturas digitais de meios de comunicação social para os adultos.
O governante anunciou ainda que será apresentado ao Parlamento, no início de julho, um Código de Comunicação Social, que está neste momento em construção. Com aposta na colaboração com todos os players do mercado, de forma a apetrechar o documento com todos os instrumentos que se considerem ser fundamentais. "Queremos uma comunicação social livre, isenta e que cumpra o seu papel de sempre: ser um participante ativo na construção da sociedade democrática e do estado de direito", remata.
DO ESTUDO AOS CASOS CONCRETOS
Ao nível europeu, estão a ser desenvolvidas várias iniciativas em termos de reforço da literacia mediática. Mas há desafios ao nível dos estados-membros, já que os níveis de educação variam, defendendo-se uma maior priorização do tema tanto em termos de políticas públicas como dos curricula nas escolas. Acresce que as intervenções que foram desenvolvidas para os grupos vulneráveis permanecem ainda desafiantes, especialmente tendo em conta o atual clima político europeu, muito polarizado. As conclusões são do estudo "Políticas Europeias de Literacia Mediática", desenvolvido pela Ecorys, com financiamento da Google, entre setembro de 2023 e julho de 2024.
Como explica Niklas Olausson, Research Manager da Ecorys, o trabalho teve como objetivos a avaliar as implicações das tecnologias emergentes, incluindo a IA generativa, para combater a desinformação e promover a segurança online, assim como detalhar a agenda para a colaboração, com as iniciativas de literacia mediática desenvolvidas pela indústria, setor público e sociedade civil na Europa. Orientar futuras decisões da Google foi também um objetivo. E mostra que tanto os decisores políticos como os stakeholders estão a responder às preocupações em torno das quebras de confiança significativas dos europeus. Sendo que as agendas políticas atuais na literacia mediática são largamente impulsionadas pelas agendas de regulação dos media. Acresce que os rápidos desenvolvimentos da IA generativa estão a ultrapassar o desenvolvimento curricular da literacia mediática e a capacidade de treinar os educadores.
Perante esta constatação, as recomendações chave do trabalho passam por desenvolver estratégias mais amplas de literacia mediática, assim como por aprofundar a sua integração na educação forma. Investir na transparência e em melhores evidências de iniciativa de literacia mediática foi também considerado da maior relevância.
Este primeiro estudo sobre o tema mostra também que nas iniciativas desenvolvidas pela Google, todas apostam em programas suportados na transparência dos recursos e ferramentas, em open-source, em benefícios para a sociedade e em aproveitar os benefícios da IA generativa. Como destacou o orador, contabilizaram-se mais de 70 projetos que treinaram mais de 140 mil jornalistas em literacia mediática.
Programas como o Prebunking, o Super Searchers ou o Be internet Awesome mostram que as iniciativas devem refletir os diversos contextos, necessidades circunstâncias. Assim como serem desenvolvidos em parceria e colaboração e envolverem o utilizador final, para ativar o seu pensamento crítico, usando aprendizagem pela ação. A adaptabilidade e a resiliência às mudanças sociais e tecnológicas são também consideradas um imperativo.
Na Google, todos os produtos estão a ser construídos para ajudar os seus utilizadores e dar-lhes confiança. A garantia é dada por Charles Bradley, manager de Trust Strategy da tecnológica, que refere que a aposta, para perceber a proveniência dos conteúdos, envolve métodos como a marca de água, marcação e metadados, impressões digitais e declarações de informação por parte dos criadores de conteúdos. Há ainda ferramentas e características que permitem distinguir se um conteúdo - seja imagem ou vídeo - é feito por um humano ou por IA, como o contexto, os sinais, de onde veio e o que outras fontes dizem dele.
Admitindo que persistem ainda muitas questões e desafios para endereçar, Charles Bradley diz que as melhores práticas passam por dispor de ferramentas ativas de proveniência, por ferramentas de contexto no produto e por esforços de parcerias na indústria, para ajudar a trazer maior transparência e mais contexto às pessoas. Assim como por investimentos em programas de literacia digital baseados em evidências.
Um dos programas de sucesso mundial é o Super Searchers, que já está a ser implementado no mercado nacional, graças a uma parceria da Google com os fundadores do ‘Agarrados à Net', Cristiane Miranda e Tito de Morais. Os dois responsáveis explicaram os fundamentos do seu projeto inicial: ajudar os pais, famílias, e professores a ajudarem os jovens a gerirem melhor o tempo que passam online. Mas muito rapidamente abraçaram outras áreas de promoção do bem-estar digital, como a prevenção do uso excessivo e problemático dos ecrãs, questões relacionadas com a imagem corporal e até a violência sexual baseada em imagens. Criaram ainda outros programas, sendo que desde outubro de 2021 até agora já chegaram a quase 23 mil pessoas de forma direta.
Numa formação em Bruxelas da Google, em 2023, contactaram com o programa Super Searchers e o desafio seguinte foi trazê-lo para o país. O que acabou por acontecer em meados do ano passado, com a assinatura de um acordo. A partir de então, os dois responsáveis estão a percorrer o país com formações no âmbito do programa, sendo que os destinatários preferências são os professores bibliotecários, embora esteja aberto a outros professores e até outros públicos que tenham interesse na literacia mediática. Sendo a formação presencial, de quatro horas, para uma audiência de, no máximo 60 pessoas, o feedback tem sido até agora muito positivo. Já foram realizadas 26 sessões e a meta é alcançar 800 pessoas até final deste ano. Neste âmbito, foram desenvolvidas várias parcerias para aumentar o alcance da iniciativa.
ENFRENTAR DESAFIOS EM COLABORAÇÃO
No debate que se seguiu, moderado pela Diretora Executiva da APDC, Sandra Fazenda Almeida, ficou claro o muito que há ainda a fazer quando se fala de literacia mediática em Portugal. Incluindo para os próprios jornalistas. Da parte do Executivo, ficou o compromisso, através do #PortugalMediaLab, a Estrutura de Missão para a Comunicação Social criada em agosto do ano passado, que serão postas em marcha todas as medidas no âmbito das políticas públicas definidas para a comunicação social.
Para o diretor do #PortugalMediaLab, "vivemos desafios sociais e da nossa democracia e só é possível fazer face a eles com um conjunto de medidas e a mobilização dos poderes públicos, mas também da sociedade. Nessa situação, a literacia convoca um conjunto de conhecimentos e competências que temos de generalizar, sob pena de não sermos capazes". E destaca o papel dos agentes económicos, sobretudo os que "têm um papel relevante no mundo digital e que, por essa via, têm uma responsabilidade absolutamente central e cada vez maior" quando se fala de literacia mediática. Neste âmbito, e tendo em conta os desenvolvimentos recentes noutras geografias, defende que é importante que a Europa saiba "manter o foco e a linha de rumo", para não se desviar destes desafios.
Referindo-se ao Plano de Ação para a Comunicação Social e às suas 30 medidas, refere que está organizado em quatro eixos. Sendo que um deles tem a ver com a desinformação e a promoção da literacia mediática. Além disso, há outras medidas fora deste eixo que são importantes para este objetivo, como, no âmbito do novo contrato de serviço público a ser assinado em breve com a RTP, estar previsto o reforço do papel em termos de literacia mediática e, em particular, na desinformação. E alerta: "é importante não perdermos de vista que a literacia mediática é muito mais do que a desinformação. E que, quando falamos do combate à desinformação, falamos da necessidade de convocar medidas, recursos e linhas de ação que vão além da própria literacia mediática".
Já Luísa Meireles, Chefe de Redação da agência LUSA, citando James William Carey, jornalista e professor norte-americano, salienta que "o jornalismo é um outro nome para a democracia. E não pode haver jornalismo sem democracia". E, efetivamente, os jornalistas têm sido os gatekeepers da agenda da informação, com a sociedade a confiar na verificação de factos feita por eles. Mas na conjuntura atual, com uma sociedade em crise e um setor de media também ele em crise, a situação alterou-se. E as novas tecnologias assumiram um papel relevante na verificação de factos, ajudando a distinguir o que é verdadeiro do que é falso.
Neste âmbito, o papel da LUSA é também o de fornecer informação credível e de confiança. Ou seja, informação factual, que dá voz aos diversos segmentos de uma forma rigorosa, para que as pessoas possam ter as suas próprias opiniões, usando as mais variadas ferramentas e recorrendo a parcerias. "Estudos feitos durante a campanha eleitoral na Alemanha mostram que o X, cujo dono promoveu ativamente o partido de extrema-direita AFD, produzia diariamente 200 mil conteúdos de notícias falsas. Juntando a isso o faco de 52% dos jovens alemães, de acordo com o Eurostat, se informam nas redes sociais... Percebe-se a dimensão que constitui para a sociedade esta explosão de mentiras e de falsidades", alerta.
Com vista a promover a literacia mediática, a Fundação Calouste Gulbenkian lançou o Programa Democracia e Sociedade, no âmbito do seu Plano Estratégico 2023-2027. Pedro Calado, presidente do European Media and Information Fund Management Committee da fundação, diz que a iniciativa se insere num dos valores basilares da Calouste Gulbenkian: a defesa dos valores das democracias liberais. Com a "criação de diálogos que contrariem os cenários de polarização crescente e o constante incentivo a que diferentes vozes e aré mesmo contraditórias, que numa democracia naturalmente se debatem, reconheçam a necessidade de manter intocada aquilo que é fundamental". Porque "não há democracia sem cidadãos democráticos".
O gestor destaca projetos como o ‘Correspondentes do Bairro', em colaboração com o jornal online A Mensagem de Lisboa, desenvolvido no bairro do Rego. Envolve jovens na criação de uma redação, que são formados para "desconstruir as narrativas de desinformação sobre a sua comunidade e passarem a produzir notícias sobre histórias positivas do bairro". O projeto está agora a ser escalado para outros bairros.
O trabalho da fundação é ainda feito nesta área através do European Media and Information Fund, da Google, cujo Comité de Gestão é copresidido por Pedro Calado, em representação da instituição. Esta é uma iniciativa criada em 2021 como uma dotação inicial de 25 milhões de euros, gerida pela Calouste Gulbenkian em parceria com o Instituto Universitário Europeu. E tem na literacia mediática uma das suas quatro áreas de intervenção. Até agora, foram apoiados 16 projetos, alguns portugueses, em áreas como o fact-checking, sandboxes ou ferramentas de IA para detetar táticas, protocolos e técnicas da desinformação. Os benefícios totais atribuídos foram de 5,8 milhões de euros.
Questionado sobre o balanço destes quase oito meses de atividade do #PortugalMediaLab, Sérgio Silva refere que a missão desta estrutura de missão é apoiar o Governo nas políticas publicas de comunicação social e na implementação do plano de ação. Destaca que no âmbito da consulta pública ao Plano de Ação para a Comunicação Social, foram recebidas 26 contribuições, estando neste momento a ser elaborado o relatório de apreciação dos mesmos. E defende a política pública de literacia mediativa tem que se centrar não apenas nas crianças e nos jovens, mas ir muito além disso, para outros públicos-alvo, até mesmo os jornalistas.
Até porque, como refere Luísa Meireles, "os jornalistas estão na primeira linha, são os primeiros a combater e um alvo a abater. É fundamental terem um conjunto de ferramentas para detetar o que é falso. E que está a aumentar, nomeadamente com a IA. Temos mesmo de voltar ao back to basics. As opiniões têm de se alicerçar em factos".
E as parcerias podem ser "a única forma de se ter o impacto que se pretende", acrescenta Pedro Calado. "É preciso não diabolizar a tecnologia, que traz imensos riscos, mas é parte da solução que estamos aqui a convocar. Temos de tentar usá-la para o bem comum. Esta busca do bem comum faz-se muito com uma visão filantrópica", defende. É que, na sua perspetiva, "há que resolver na base das causas profundas do descontentamento e aprender e valorizar o facto de discordarmos um dos outros. Há que saber acomodar a diferença", porque, afinal, "é o que nos torna interessantes".
08:30 | BREAKFAST | |
09:00 | OPENING SESSION | |
- Rogério Carapuça - President, APDC - Bernardo Correia - Country Manager, Google Portugal - Carlos Abreu Amorim - Deputy Secretary of State for Parliamentary Affairs | ||
09:30 | MEDIA LITERACY: RESEARCH & CASE STUDY | |
- Charles Bradley - Manager, Trust Strategy @ Google apresentação Q&A | ||
10:20 | MEDIA LITERACY: PUBLIC POLICIES IN PORTUGAL | |
- Luísa Meireles - Editor-in-Chief, LUSA website Q&A | ||
11:30 | CLOSING REMARKS |
Formação presencial volta a centrar-se no tema ‘Aumente a sua produtividade com IA'
Formação presencial volta a centrar-se no tema ‘Aumente a sua produtividade com IA'