A pandemia trouxe aprendizagens e lições que poderão ser aplicadas para o futuro pelas cidades. A cooperação e a partilha revelaram-se essenciais para ultrapassar muitos dos complexos desafios que foram surgindo e a tecnologia foi essencial, sendo agora o acelerador da mudança, para criar para territórios mais inteligentes, sustentáveis e coesos. Há tendências que foram aceleradas, como o trabalho remoto, ou a transformação para o digital. Certo é que estamos preparados e temos condições para dar o próximo passo, o de uma rápida recuperação social e económica.
Estas foram algumas das conclusões do Webinar "Novo Normal nas Cidades do Futuro", da APDC, através da Secção Healthy & Sustainable Cities, que juntou vários autarcas e gestores de empresas tecnológicas num debate sobre os desafios e respostas a um novo normal.
Miguel Pinto Luz, vice-presidente da Câmara Municipal de Cascais e o primeiro keynote speaker do evento, começou por destacar os três níveis de análise neste período de pandemia, desde meados de março. Numa primeira fase, viveu-se uma urgência sanitária, que trouxe quase em paralelo consigo uma urgência económica. Depois do Governo e autarquias terem respondido bem a esses desafios, começamos agora a viver uma "emergência social", porque o impacto social da covid-19 já se começa a sentir e vai agudizar-se, pelo que é preciso "estar atento".
Cascais teve desta a primeira hora capacidade de resposta no combate à Covid-19, com medidas como programas generalizados de testes gratuitos à população, criação de uma fábrica de produção de máscaras para combater a especulação de preços, apoio aos mais idosos e aos alunos que mais precisavam. Toda a transformação tecnológica realizada nos últimos 15 anos permitiu ainda colocar de imediato dois mil dos 3,2 mil colaboradores em casa. E o processo de inovação continuou todos os dias.
Segundo o autarca, "a tecnologia foi fundamental" para ter esta capacidade de resposta imediata à urgência saniária, contando ainda com os seus parceiros/fornecedores para reforçar onde foi preciso para "acudir a todas as necessidades". É que, na sua perspetiva, a tecnologia não é um driver, mas "um facilitador para as políticas publicas".
Também na resposta à urgência económica, os parceiros tecnológicos foram essenciais para desenvolver rapidamente mais projetos e soluções inovadoras, como apps de apoio aos negócios que precisavam de ajuda ou de campanhas para ajudar os empresários que estão a perder dinheiro. Permitiu ainda apoiar as entidades sanitárias, com georreferenciação de testes covid ou dos movimentos das infeções para que "em conjunto, pudéssemos alinhar projeções de forças no território para acudir a esta emergência".
E Cascais já está no terreno para dar resposta à emergência social. O desemprego já está a crescer e, segundo Miguel Pinto Luz, "quando os programas de layoff acabarem temos que estar atentos e ser os primeiros a responder. É esta a nossa obrigação. Vivemos numa comunidade, de braços dados, e temos de dar respostas solidárias porque só essas fazem sentido".
PREPARAR A RECUPERAÇÃO ACELERADA
O gestor acredita que "estamos a viver uma guerra contra a pandemia", mas as infraestruturas não foram destruídas e os territórios estão intactos. Pelo que "hoje, estamos todos preparados, como comunidade e como país, privados e setor público, para logo que seja possível abrir de novo a economia e a sociedade, possamos voltar de novo a crescer". E está convencido que o crescimento será muito acentuado, embora ainda tenhamos de esperar uns largos meses até que isso aconteça.
Também na Câmara Municipal de Penafiel os desafios da pandemia se sentiram fortemente. Pedro Cepeda, Vereador do Planeamento e Desenvolvimento Económico, outro dos keynote speakers do evento, citando a conhecida cientista Elvira Fortunato, começa por destacar que "cooperação e partilha são a chave para o futuro". É que ambas são cada vez mais fundamentais, porque "se o mundo já estava em mudança acelerada, principalmente em termos económicos, a pandemia veio acelerar o processo de transformação".
O autarca divide a pandemia em 3 fases distintas: a fase inicial, de impacto, quando ninguém estava preparado para o que estava a acontecer, surgindo grandes dificuldades para quem tinha de agir num cenário de grande incerteza; a fase da resiliência, que vivemos hoje, enquanto se aguarda por uma vacina; e a fase de superação, pós-covid, com o retomar das atividades e do crescimento.
Todas estas fases tiveram desafios que tiveram ou terão de ser ultrapassados. A fragilidade e falta de capacidade de resposta, com a ausência de meios para responder a situações inesperadas, o isolamento dos mais vulneráveis e o impacto económico no concelho foram os desafios da primeira fase. Onde a autarquia teve que tomar várias medidas, no âmbito das quais se destacou a cooperação entre setor público e privado e até entre empresas que até então eram concorrentes e que perceberam que eram interdependentes e que precisaram de se unir.
Já na atual fase da resiliência, a gestão comunicacional e sensibilização da população, assim como a garantia do bem-estar da sociedade e os impactos das medidas restritivas na economia local. Criar soluções centradas no digital, como a criação de uma plataforma de marketplace para o comércio poder vender online ou o apoio à digitalização dos comerciantes, foram apostas.
SUPERAR COM LIDERANÇA E INTELIGÊNCIA
Na próxima fase, de superação, um dos desafios será de liderança e coesão territorial, o que implicará a implementação de estratégias de desenvolvimento local e o combate ao acentuar das assimetrias regionais no desenvolvimento. Como refere Pedro Cepeda, a liderança política e a implementação de estratégias de desenvolvimento local serão fundamentais para o desenvolvimento económico, sempre considerando que as estratégias de recuperação terão de ser diferentes, porque cada território tem as suas características específicas.
A inteligência urbana é vista como outro desafio e neste âmbito, terá de haver um reforço da tomada de decisão política com base em dados, ciência e factos, de forma a capacitar os decisores para a gestão do dia-a-dia e para apoiar o planeamento do futuro e o desenvolvimento estratégico. Transparência, prestação de contas e disponibilização de informação publica também são críticas. Para o autarca, "a chave para o futuro está na cooperação e na partilha, para se conseguir ter um país mais solidário, coeso e cooperante. Onde os poderes públicos, privados e academias trabalhem cada vez mais em conjunto".
E como é que uma autarquia deu resposta ao desafio da digitalização da Educação? José Martins, diretor do Departamento de Inovação e Tecnologias de informação e Comunicação da Câmara Municipal de Oeiras, explicou a abordagem do município e como está agora ao novo normal no contexto da formação das novas gerações naquele concelho.
Com a decisão de confinamento, apostou-se de imediato numa estratégia para assegurar o ensino online aos mais de 20 mil alunos do concelho. O que passou pela formação intensiva de dois mil professores e pelo fornecimento de equipamentos e acesso à internet aos alunos com mais dificuldades, de forma a garantir as condições mínimas para manter as aulas à distância.
Tratou-se de "um esforço muito grande, mas que deu resultados", resultando desta experiência uma "uma visão holística e uma mudança de paradigma no ensino", suportada na tecnologia. Com os ensinamentos retirados, o município está agora a avançar para uma nova abordagem do ensino, "suportada numa base tecnológica e numa infraestrutura fortes, que são um requisito essencial, até porque as escolas continuam a ter grandes debilidades". O objetivo é dar ao sistema educativo da região de todas as condições para, no futuro, ter capacidade de resposta imediata a novas situações.
TECNOLOGIA É ESSENCIAL
Mas qual deverá ser a transformação das abordagens das autarquias para responderam aos desafios da pandemia e às necessidades dos cidadãos? Tiago Costa, Western Europe Senior Partner do Kaizen Institute, defende que, olhando para os processos autárquicos, tem que se fazer uma reengenharia de processos, garantindo que se elimina o desperdício (tarefas que não acrescentam valor) e focar no serviço ao cliente/cidadão/munícipe. Nos projetos que tem em curso, o objetivo é conseguir, na ótica do munícipe e utilizador dos serviços autárquicos uma maior rapidez e qualidade de resposta.
Este responsável deixa ainda claro que, também ao nível autárquico, o teletrabalho é um modelo que veio para ficar, depois da pandemia ter acelerado os processos de trabalho em cerca de dez anos. E tem todas as vantagens, tanto do lado do munícipe, que tem respostas mais celebres, como do lado do colaborador autárquico, quer obtém maior otimização de processos. E ainda da autarquia, já que com o trabalho remoto se libertam espaços para outros fins.
Joel Silveirinha, head of Digital Transformation Smart Cities e Country Digital Acceleration da Cisco Switzerland, conhece bem a forma como os governos nacionais e locais se tiveram de ajustar aos condicionalismos da pandemia. O grupo que integra tem apostado na ajuda ao setor público e em parcerias para criar valor em ecossistema, nomeadamente através do programa Country Digital Acceleration, que já criou uma rede de 35 países, incluindo Portugal, para desenvolver soluções tecnológicas e projetos digitais.
A plataforma Cisco WebEx, por exemplo, está a ser utilizada e reajustada para responder às necessidades do setor público nestes tempos de emergência. Na Suíça, por exemplo, é usada para ligar as comunidades mais remotas ou para permitir a autarcas e políticos continuar a criar, rever e aprovar propostas de lei de forma virtual. "De facto, o maior acelerador do digital foi o Covid-19", destaca. E a "grande vantagem de o setor privado trabalhar com o setor público neste tipo de programas é a facilidade com que podemos trazer especialistas de outros países para criar as melhores experiências e práticas e maximizar o impacto que podemos ter em todos os países. Acelerando a implementação destas estratégias, que vão trazer mais resiliência para o governos e autarquias".
Mas como é que a adoção de tecnologia pode ajudar as cidades na resposta a estes desafios e quais são as tendências tecnológicas que estão a surgir? Paulo Santos, Expertise Executive Lead da Axians, começa por destacar que "os interlocutores que estão à frente das cidades têm, de facto, uma realidade muito complexa e com um grau de incerteza crescente". É que ainda há muitas questões sem resposta, porque não se sabe o que vai acontecer, mas há que planear o futuro.
MUDAR DE PARADIGMA
Por isso, defende que é necessário mudar de paradigma, aproveitando todo o potencial das tecnologias emergentes, o que permitirá ter "cidades mais proativas e inteligentes". Para isso, a gestão das cidades terá de assentar em quatro pilares tecnológicos: dados, inteligência artificial (IA), IoT e 5G. Com a nova geração móvel, prevista para 2021, haverá uma largura de banda e uma velocidade muito superiores às atuais, o que potenciará a sensorização de tudo nas cidades, gerando "uma quantidade descomunal de dados que vão ser uma fonte essencial para quem tem de gerir um centro urbano".
Na sua ótica, os dados serão "um pilar fundamental para a gestão inteligente das cidades", mas há que saber aproveitar o seu potencial através das tecnologias que estão a surgir. "Agregar dados das autarquias, da AP central, das empresas publicas e privadas e de todas as coisas que compõem a cidade, numa lógica de colaboração global, é fundamental para gerir melhor as cidades e para maximizar as experiências de utilização urbana dos cidadãos", acrescenta.
E a ampliação da gestão das cidades, através da tecnologia, terá que ser feita em duas vertentes: a gestão do dia a dia, apostando-se numa lógica de automação, pondo a IA ao serviço da autarquia para para automatizar tudo o que é possível; e numa lógica preditiva, para permitir detetar o mais cedo possível algumas frentes urbanas e auxiliar o autarca no processo estratégico de planeamento da cidade e dos serviços.
Um dos temas do período de debate foi a utilização da IA e até que ponto poderá terminar numa espécie de ‘big brother' ao nível autárquico. Trata-se, para Paulo Santos, de uma fronteira muito complicada, com a qual é preciso ter cuidado. Mas salienta que terá que se ter sempre em conta a ética do que se faz no âmbito da IA, com transparência para com o cidadão.
A regulamentação será também essencial para evitar "qualquer tipo de desvio", acrescenta Joel Silveirinha. Uma posição reiterada por Miguel Pinto Luz, que refere que este tema tem vindo a ser trabalhado em Cascais, até porque a tecnologia também tem respostas para isto. O que se tem vindo a desenhar na autarquia, com parceiros, assenta no princípio do privacy by design: todas as plataformas tecnológicas usadas permitem que o utilizador, de forma autónoma e voluntária, decida que quer tornar-se invisível ou não. Isso coloca o poder absoluto do cidadão, que é a visão da Europa. Afinal, os dados pertencem aos cidadãos e têm o poder de o decidir.