Uma cidade é uma realidade muito complexa. É um sistema dos sistemas, que são interdependentes. Quando um falha, os outros também começam a falhar. Sendo a evolução das cidades para smart cities uma inevitabilidade e não uma escolha, a utilização das ferramentas TIC assume um papel central num processo de mudança a todos os níveis. Mas se a tecnologia é fundamental para a mudança, ela está disponível e pronta a ser utilizada. Há oferta de soluções e de infraestruturas. O problema reside ao nível da liderança, da organização, da visão, da estratégia, da definição de um roadmap e da sua implementação. É consensual que subsistem atualmente ainda muitos desafios, entraves e estrangulamentos a uma mudança inteligente das cidades. Mas é preciso começar. Juntando esforços, reunindo todos os stakeholders do ecossistema e ‘destruindo a complexidade". Porque a mudança já não depende de um problema de tecnologia e de criação de soluções inovadoras mas sim da vontade.
No debate sobre "Cidades Inteligentes - Crescimento Inteligente", moderado por Pedro Santos Guerreiro, do Expresso, e que juntou neste Executive Breakfast vários responsáveis, ficou claro que há ainda muito a fazer em Portugal. Mas que já se está a avançar em várias frentes.
Lisboa é um grande exemplo desta mudança. A cidade enfrenta hoje três grandes desafios, do ponto de vista político, que são em simultâneo três grandes objetivos que norteiam, organizam e estruturam a atividade da cidade e vão determinar o seu futuro: ter mais pessoas na cidade, ter uma cidade a funcionar melhor e criar mais emprego. Como explica Fernando Medina, Presidente da Câmara Municipal Lisboa, o centro da cidade perdeu, nas últimas três décadas, cerca de 300 mil pessoas num universo de 800 mil. Uma realidade que "causou uma profunda distorção e uma nova geração de problemas na cidade", já que surgiu uma nova dinâmica: mais pessoas na área metropolitana e menos no centro da cidade. A consequência foi que "tudo teve que ser reconstruído", causando "uma grande disfunção e tensões brutais em termos de oferta de serviços".
Para o autarca, para ter mais pessoas na cidade é preciso ter uma cidade a funcionar melhor. E este é um dos objetivos de fundo da autarquia, num processo que não é fácil, tendo em conta a grande mudança do mercado. A dinâmica da mobilidade, e neste âmbito dos transportes, é a grande chave para garantir um melhor funcionamento da cidade. Mas onde continua a subsistir, no que respeita ao sistema de transportes na zona metropolitana de Lisboa uma situação "totalmente disfuncional", tornando impossível equacionar um sistema de mobilidade integrado e articulado. O que compromete também o objetivo de ter mais empregos na cidade, assumindo-se esta como um centro de vitalidade, emprego e de atividade económica, onde as pessoas possam estar e produzir. Para Fernando Medina, "a qualidade de vida na cidade é essencial para atrair uma nova geração de pessoas."
Mas como se põe uma cidade a funcionar, dando-lhe mais inteligência? Para António Raposo de Lima, Presidente da IBM Portugal, este é um processo que terá que ser feito por aproximações. "As cidades têm desde logo que estar focadas nas pessoas. É preciso criar condições para atrair mais pessoas, mais empresas, mais talento. Criar ciclos virtuosos capazes de as projetar". Tendo em conta a experiência do grupo, que está envolvido em mais de 800 projetos de smart cities, fica claro que a tecnologia é fundamental na mudança. Mas é preciso "começar a viagem. É uma viagem que pode ser dada com pequenos ou grandes passos e grandes projetos transformadores. Mas é preciso iniciar-se. E para isso, é preciso ter uma visão, confiança e marcar um plano, um roadmap e executar".
E se o tema da mobilidade é central, há outros igualmente importantes. E que podem ser monitorizados em tempo real através das ferramentas tecnológicas, recorrendo a sistemas altamente complexos, está a IoT, o big data e capacidade de analítica e de visualização e monitorização. Mas a tecnologia só pode ajudar se "existir visão, um roadmap definido e uma execução muito disciplinada". Para o gestor, o "tema da liderança é a resposta chave".
Também Augusto Mateus, Presidente da Augusto Mateus & Associados, destaca o tema da liderança. Sendo a cidade um dos sistemas mais complexos, com imensa variedade e um grande nível de interatividade, não se gere de forma simples. E impõe "liderança, que tem que ser exercida no sítio certo. Não vale a pena ter ilusões de que é possível construir uma liderança quando ela é curta do ponto de vista institucional. É um grande desafio político".
Para este responsável, "a batalha das cidades inteligentes é reinventar a cidade desde o início", criando liberdade e atratividade, através não apenas da liderança mas de uma base ecológica de sustentabilidade. "Tem que se garantir vida com qualidade, destruindo a complexidade nas cidades. Cada cidade tem que se fazer com o que é, com uma liderança e com algum voluntarismo estratégico."
E Mário Vaz, CEO da Vodafone, destaca outro elemento fundamental: "sendo a gestão de uma cidade algo muito complexo e necessariamente interdisciplinar", impõe a cooperação entre as diferentes entidades. As telecomunicações têm um papel relevante nessa cooperação, uma vez que quando se fala hoje de cidades fala-se de pessoas e de coisas e da interação entre elas. Através da recolha de dados e o seu tratamento de forma inteligente, é "possível melhorar a qualidade de vida das pessoas e a eficiência das organizações". O gestor não tem dúvidas de que a gestão política da cidade pode beneficiar dos inputs em tempo real do que acontece na cidade.
E um dos grandes desafios é transformar dados e informação em conhecimento. E criar mais riqueza para ter mais residentes e emprego. Segundo Mário Vaz, se as cidades não são suficientemente smarts não é por uma questão de tecnologia ou de redes de telecomunicações. É evidente que mesmo em redes há investimentos que ainda podem ser feitos. O que falta é liderança e um projeto estratégico. E fazer as coisas de uma forma integrada, para não duplicar investimentos. "As cidades têm que funcionar em rede e coordenação entre si., Não faz sentido num país como Portugal que cada cidade esteja a fazer o seu projeto e que no final não possam ser interoperáveis. Não temos recursos para isso", explica.
Numa conjuntura de crescente pressão sobre os serviços, sistemas e infraestruturas da cidade, em resultado da urbanização acelerada, uma cidade só conseguirá ser mais inteligente se "conseguir gerir melhor o fluxo de dados transformados em informação e em conhecimento e com isso resolver um conjunto de ineficiências". Para Raposo de Lima, "as soluções inovadoras ajudam a dar este passo qualitativo. Uma cidade de futuro deve aproveitar melhor esta riqueza", gerindo melhor os seus recursos com recurso às ferramentas tecnológicas e sentando todos os stakeholders à mesma mesa.
Mas na prática, persistem muitos estrangulamentos, entraves e disfuncionalidades difíceis de ultrapassar. Em Lisboa, por exemplo, um dos maiores problemas que o líder da Câmara destaca é o dos transportes. Onde existe "um problema gravíssimo de organização da estrutura da administração do Estado, que não é adequada à resolução e à escala dos problemas". O resultado é que o sistema, público e privado, de transportes não funciona de forma integrada nem em ligação, conduzindo a profundas distorções dentro da cidade. Com impactos económicos grandes. E a perspetiva, com a atribuição da concessão dos transportes públicas a privados, é que esta situação se mantenha, em resultado de uma lógica de centralismo.
"Quanto discutimos tecnologias poucas vezes a discutimos. Estamos a discutir organização, poder e decisão", mas "é importante não desistir do que é importante". Por isso, a Câmara de Lisboa continua a trabalhar, até porque "a questão das smart cities não é uma questão de escolha. Tudo tem que ser smart citie" e a utilização das TIC é "uma evidência e uma extraordinária oportunidade. A inteligência está em saber usar das TIC como forma de ajudar à execução de projetos e à resolução dos problemas organizacionais". Há que saber quais os projetos chave e em que áreas para potenciar a mudança. E cita as apostas como a instalação de um centro de operações integrado em Lisboa, que reúna proteção civil e mobilidade. Ou a gestão do sistema de saneamento. Ou ainda várias vertentes na área da mobilidade e a eficiência energética.
Neste processo de mudança e de construção de cidades cada vez mais smarts, os fundos do Portugal 2020 poderão ter um papel a desempenhar. Desde que os recursos sejam bem afetados, com descentralização estratégica e seletividade, como considera Augusto Mateus. Aqui, era necessário "algum voluntarismo público. Os fundos estruturais têm que ser utilizados para corrigir falhas de mercado". E focalizar as apostas estratégicas, utilizando intensivamente projetos colaborativos. Para isto "é preciso coragem política, mas também colaboração empresarial. Os projetos têm que ser de ligação de várias empresas". Por isso, recomenda: "nada de pressas no Portugal 2020. Temos que concentrar recursos no que pode mudar a face das cidades, da especialização, da internacionalização. De for para fazer chegar dinheiro às empresas, vai correr mal. Porque vai chegar às que precisam e não precisam. É uma questão de dimensão crítica".