A Stayaway Covid não é a "bala mágica" que vai resolver todos os problemas em torno da pandemia, mas sim mais uma ferramenta que pode ajudar a combatê-la. A privacidade e proteção de dados são preocupações centrais desde a sua conceção, assim como uma utilização voluntária. Só agora começa a perceber-se o caminho que poderá ser tomado, depois de retiradas algumas aprendizagens. A app, que será em breve interoperável com as congéneres europeias, tem potencial para assumir um papel de grande relevo na estratégia nacional de combate à Covid-19. Mas é preciso saber como ultrapassar a iliteracia digital que persiste. As conclusões são do mais recente webinar da APDC no âmbito do Ciclo COVID-19 Digital Reply.
Com o tema "StayAway Covid: como controlar a pandemia?", este encontro, moderado pelo presidente da APDC, Rogério Carapuça, permitiu fazer um ponto de situação desta aplicação, analisar os principais desafios com que se defronta e qual o seu papel no âmbito da estratégia de combate à pandemia que o país está agora a adotar. Um leque de oradores envolvidos no projeto abordou temas como as melhorias que estão a ser introduzidas para que a app possa ser ainda mais eficaz num contexto cada vez mais crítico, assim como a privacidade e proteção de dados, que voltaram a estar em destaque nos últimos dias.
Considerando incontornável começar pela polémica desencadeada pela decisão do Governo de tornar a aplicação obrigatória, hipótese já afastada, até porque todas as opiniões que vieram a publico foram contra a obrigatoriedade e na Europa todas as apps são voluntárias, José Manuel Mendonça não tem dúvidas de que toda a polémica "representou uma excelente oportunidade para discutir a a Stayaway Covid e os alegados problemas de privacidade e anonimato, que voltaram a ser colocados".
Para o presidente do INESC TEC e Professor Catedrático da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, que liderou o projeto de criação da solução, o que o preocupa não é "a privacidade e o anonimato, que estão completamente garantidos", mas sim a eficácia desta solução, que está "ligada neste momento a problemas de operacionalização que são conhecidos e públicos". Nesse sentido, está já a ser estudado com os parceiros europeus eventuais indicadores para medir esta eficácia, até porque todos os países europeus têm os seus problemas, tendo em conta que se trata de "algo que é novo, que nunca foi feito e que está em fase embrionária de utilização".
No caso nacional, existem neste momento 2,37 milhões de instalações da app, 1.277 códigos carregados pelos médicos e 397 códigos inseridos pelos utilizadores da app. Mas estes números não refletem a situação real, até porque quase tudo passa ao lado da aplicação, que tem registado constrangimentos, com a excessiva lentidão na geração dos códigos e na sua transmissão aos doentes.
Como explica o responsável, são temas que estão a ser endereçados pelo INESC TEC e pelos Serviços partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), no sentido de automatizar ao máximo a geração e transmissão dos códigos aos doentes e facilitar a sua introdução na app, o que aceleraria o processo. Mas este é um "período de aprendizagem", que é "complexo e difícil de orquestrar", não só em Portugal como na Europa, não havendo ainda indicadores homogéneos que permitam fazer comparações.
Trata-se, para José Manuel Mendonça, não de um problema tecnológico, mas "sociotécnico, organizacional, de pessoas e de perceções. As coisas levam o seu tempo a ser feitas. Estamos numa situação de emergência e todos estamos a fazer o nosso melhor para melhorar. O que não precisamos é que pessoas venham com premissas erradas tirar conclusões perigosas a propósito da polémica da obrigatoriedade da app".
UM PROCESSO QUE LEVA TEMPO
Reitera também que "quando a app foi concebida, utilizou-se uma tecnologia acessível, distribuída amplamente e gratuita, sempre tendo em conta os pilares da privacidade de dados, o anonimato e o carácter voluntário". Estas são características que trouxeram "alguns constrangimentos" como os que se estão a registar, porque foi "uma versão mínima das funcionalidades para não ferir os três pilares".
Por isso, e como a solução "funciona em plataforma, tudo leva muito tempo". Acresce que "não tem havido esforço no sentido de dinamizar a app", considerando que o verdadeiro esforço aconteceu agora, com a polémica em torno da intenção de a tornar obrigatória: "a dinamização da plataforma foi feita pela polémica e não pela perceção da eficácia. Infelizmente".
Agora, há que trabalhar na simplificação e automatização, até porque há "uma falta de conhecimento generalizado de como funciona a app, que não é igual à maioria das aplicações", mas que "tem muito mais segurança e privacidade que todas as demais apps que as pessoas tem nos telemóveis, das lojas da Apple e da Google, e das redes sociais que usam". Aliás, destaca mesmo que o rastreio digital é até muito menos intrusivo do que o rastreio manual que está a ser feito.
Para este responsável, "de repente a Stayaway Covid ficou um monstro de vigilância digital do Estado, de uma forma completamente inacreditável. É um disparate dos mais completos", mostrando-se convicto de que o "efeito de plataforma vai-se conseguir assim que se conseguir garantir a automatização na inserção dos códigos por quem está na linha da frente e, sobretudo, tirar da cabeça das pessoas as questões do anonimato e dos dados pessoais".
Henrique Barros, tendo em conta as curvas de evolução da pandemia ao nível nacional e por regiões, considera que "a resposta à pandemia, mesmo num país pequeno como o nosso, deve seguir uma estratégia global e tem que ter manifestamente uma aplicação local", porque a natureza das medidas tem de ser adaptada aos níveis concretos de infeção no terreno. Só assim se garante que não há desperdício de recursos e capacidades.
O presidente do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, professor Catedrático da Faculdade de Medicina do Porto e presidente da IEA - International Epidemiological Association, diz mesmo que a forma mais simples de responder à questão de saber se houve ou não uma estratégia de combate à Covid-19 é dizer que "foi havendo uma estratégia". É que esta é uma situação totalmente nova, que conhecemos há alguns meses, e as respostas foram-se reajustando ao que foi acontecendo e às aprendizagens retiradas.
Só agora é que se está a avançar com "estratégias mais definidas para o futuro", até porque "temos de dançar um pouco em torno dos surtos, dos locais onde o vírus vai aparecendo. Fazer contenção local, às vezes com medidas mais extremas, mas mantendo a seiva da economia e da sociedade a correr. Até porque vamos viver muitas vezes no futuro com este tipo de situações", adverte.
ESTRATÉGIA SEMPRE EM REAJUSTAMENTO
A app nacional faz parte desse caminho. Não de trata de "uma bala mágica, não vai resolver os problemas todos", diz, destacando que o rastreio manual humano nunca vai ser substituído pelo digital. "Temos de ter a noção de que estamos a começar um caminho que pode ser absolutamente extraordinário. É um caminho que se tem de fazer. Precisamos de ir aprendendo com a utilização da aplicação", acrescenta, deixando claro que "o menor dos problemas será de facto a questão do ataque à privacidade, se ela for voluntária".
"O que me preocupa nesta discussão é a eficácia que têm medidas de carácter impositivo nas respostas de saúde pública. Preocupa-me muito que possamos estar a destruir, sem razão, um instrumento extraordinário para as epidemias que aí vêm. E vêm de certeza", assegura.
Graça Canto Moniz, professora na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e Lusófona de Lisboa, que é cocoordenadora do Observatório de Proteção de Dados Pessoais da NOVA/Cedis e Chief Privacy Officer na FUTURA, abordou neste evento a perspetiva jurídica da Stayaway Covid, dividindo o tema 3 momentos na vida da app: o momento que antecedeu a solução tecnológica é hoje conhecida, a opção em concreto pela aplicação e a recomendação do governo para tornar a solução obrigatória.
O tema da privacidade e proteção de dados os utilizadores foi sempre uma preocupação em todas as fases, tanto ao nível europeu como nacional, no âmbito das discussões sobre as soluções a adotar em termos tecnológicos, para combater a pandemia. Optou-se por uma app que recorre à tecnologia Bluetooth, com uma arquitetura descentralizada, na solução que foi considerada menos intrusiva e de respeito pelas regras europeias.
Já na fase de implementação, está prevista uma avaliação de riscos, que defende que terá de ser da responsabilidade da Direção-Geral de Saúde (DGS), discutindo-se ainda se os dados são anonimizados (não sendo neste caso dados pessoais) ou pseudo-anonimizados. As opiniões parecem reunir consenso em torno da segunda hipótese, pelo que os dados da app são pessoais, refere a jurista.
Já no que se refere à recente recomendação do Governo ao Parlamento de tornar a app obrigatória, que entretanto ‘caiu', entende que aquela hipótese nunca passaria no teste de proporcionalidade, porque está ainda por demonstrar que a utilização da app é um meio eficaz para gerir as cadeias de contágios, e contrariava o princípio da igualde. Acresce que todo o processo foi desenvolvido no pressuposto de que a app é voluntária e as orientações de Bruxelas vão no mesmo sentido.
O líder do INESC TEC antecipa que a interoperabilidade da Stayaway Covid com as demais apps da Europa, que considera ser importante, será concretizada em menos de um mês. Tudo dependerá das soluções que forem decididas pelo SPMS e pela DGS e dos temas em apreciação na Comissão Nacional de Proteção de dados (CNPD) em termos de automatização e facilitação da descarga dos códigos dos infetados com Covid pelos médicos e se essa possibilidade será alargando a toda a comunidade médica ou até ao pessoal de saúde, seja no público ou no privado.
"Temos de automatizar e resolver os casos fáceis, que são da classe jovem que anda atrás dos códigos e não os conseguem obter. E procurar facilitar os casos onde existe iliteracia digital", acrescentou. Este foi, aliás, um tema que reuniu o consenso de todos os oradores. Como destacou Graça Canto Moniz, "o problema da app tem muito a ver com a maneira nos relacionamos com a tecnologia e com a iliteracia digital que existe, que é grave e que ninguém discute."